Gestão

Coragem para liderar em tempos incertos

Monica Miglio Pedrosa

Uma murmuração de milhares de pássaros, em voo sincronizado no céu azul, abriu a apresentação de Julian Pistone no Jantar do Ano, que celebrou os 20 anos do Experience Club ontem, no Vibra São Paulo. O que parece um espetáculo perfeito, harmônico e suave para quem observa de longe é, na verdade, feito de esforço, turbulência e microdecisões constantes. Uma metáfora usada por ele para refletir sobre a liderança nos tempos atuais. Assim como na murmuração, cada pessoa carrega desafios invisíveis para quem olha de fora. Pressões estratégicas, incertezas, crises pessoais, perdas e responsabilidades que exigem coragem dos líderes.

“Coragem para liderar” foi o tema da palestra que encantou, inspirou e fez a plateia de 420 líderes e acompanhantes refletir sobre o assunto. Ex-líder do Google e renomado speaker global, Julian é cofundador da Cor:age, uma rede global de impacto que reúne líderes sêniores de negócios, governo, filantropia e impacto social para criar legados de mudança sistêmica.

Julian reconheceu que vivemos um momento singular, marcado por uma convergência de ondas simultâneas: inteligência artificial transformando modelos de negócio; mudanças regulatórias que afetam não apenas compliance, mas estratégia; tensões geopolíticas; e novos competidores que surgem de setores completamente inesperados. “A maior ameaça à liderança não é a tecnologia, ou a disrupção, mas a hesitação. Ela acontece quando falta coragem”, afirmou.

Ele citou uma frase de De Kai, cientista por trás da criação do Google Translate: “Somos a última geração com o poder de moldar o crescimento das crianças digitais. Depois disso, as IAs se criarão sozinhas”. A frase serviu como alerta sobre a responsabilidade que os líderes têm de conduzir o futuro da própria tecnologia. “O desafio não é somente regular a inteligência artificial, mas educá-la, assim como pais educam seus filhos. Vocês são os arquitetos do que virá a seguir.”

Os três componentes da coragem

A partir de três histórias, uma delas pessoal, Julian apresentou o que considera os três componentes da coragem. O medo é o primeiro deles. Para Julian, ao contrário do que parece, o medo não é o oposto da coragem, mas seu ingrediente vital. Ele contou a história do pai, Salvatore Pistone, que cresceu em uma cidade da Sicília dominada pela máfia e ousou denunciar o sistema insalubre de trabalho das minas controladas pelo crime organizado.

Aos 17 anos, Salvatore foi convidado a falar em uma assembleia nacional para expor a opressão e a injustiça do trabalho nas minas. Mesmo ameaçado para não discursar, ele não obedeceu, e a máfia siciliana plantou um carro-bomba que quase o matou. Para proteger a família, mudou-se para a Alemanha e reconstruiu a vida.

A lição, segundo Julian, é que a coragem só existe quando há risco real. Momentos extremos, como crises financeiras, transformações organizacionais, rupturas pessoais ou lutos, muitas vezes determinam quem nos tornamos como líderes.

Costumamos acreditar que pessoas corajosas não têm medo. Mas a verdade é que elas sentem medo como qualquer outra pessoa. A diferença é que elas o enfrentam.”

O segundo elemento da coragem é o propósito. Não como ambição ou realização pessoal, mas como a capacidade de servir a algo maior do que si mesmo. Para ilustrar, Julian contou a história do surfista Will Skudin, que cresceu em Long Island (NY) e sonhava com ondas gigantes. Após anos de conquistas no surf, sofreu um acidente e percebeu que o oceano não deveria ser conquistado, mas compreendido. Will passou a ensinar crianças a surfar e a se manter de pé em meio às ondas.

Outra virada aconteceu quando perdeu sua filha. O luto o levou a criar uma fundação para ajudar pais a lidarem com perdas tão devastadoras como essa. Julian afirmou que isso é ter coragem, quando a ação não é motivada por glória, mas por amor e serviço.

O último componente da coragem é a ação. A disposição de agir mesmo quando o risco é real e não há garantia de sucesso. Ele contou a história de Mamoudou Gassama, imigrante africano que escalou a fachada de um prédio em Paris para salvar uma criança prestes a cair de uma sacada.

Enquanto a multidão congelava diante da iminência de queda, ele agiu. Questionado sobre onde havia aprendido a escalar, Gassama respondeu que não sabia, que simplesmente foi. E completou: “Se você pensar demais… não vai.”

Julian explicou que Gassama foi preparado para aquele momento muito antes disso. Ao decidir sair do Mali e cruzou o Deserto do Saara, em busca de um futuro melhor, enfrentou incertezas e perigos que o condicionaram a agir sob pressão. Para Julian, o oposto da coragem não é covardia, mas inação. Coragem é escolha, é hábito e pode ser treinada.

 Nos tornamos corajosos ao praticarmos atos corajosos.”

Aristóteles

5 passos para treinar a coragem

Julian apresentou um método criado em parceria com o neurocientista Steven Sidorov da UCLA (Universidade da Califórnia de Los Angeles). Para ele, a coragem é um padrão condicionado moldado pela neuroplasticidade e pela repetição. Ele usa esse método com times de elite, fundadores e executivos da Fortune 20 e atletas olímpicos.

1) Lembre-se dos momentos de coragem

Lembrar momentos de coragem reativa os mesmos circuitos cerebrais envolvidos no ato corajoso, fortalecendo o padrão que sustenta decisões difíceis em momentos de incerteza.

2) Identifique o que tornou esses momentos possíveis

Quais emoções, valores, sensações físicas e crenças sustentaram essas decisões? Ao mapeá-los e trazê-los à autoconsciência, você aumenta o controle cognitivo sobre o medo, ativando o cortéx pré-frontal, que acalma a amígdala, o alarme do medo.

3) Pratique: a coragem é um músculo que cresce pela repetição

Cada pequeno ato de coragem treina os circuitos para atos ainda maiores.

4) O cérebro não distingue coragem real da imaginada.

Atletas como o nadador olímpico Michael Phelps praticam mentalmente cada movimento antes de executá-lo. A visualização treina a consciência situacional antecipatória, uma das habilidades de liderança mais importantes da atualidade, que é a capacidade de manter a calma e agir rapidamente sob pressão.

5) Inspire e influencie as pessoas

As pessoas observam seus líderes o tempo todo. Quando você age com coragem, dá permissão a todos ao redor para fazerem o mesmo.

No encerramento, Julian provocou uma reflexão sobre legado. Ele lembrou que o futuro é construído por pessoas que continuam avançando mesmo quando o mundo oferece justificativas para parar. “A hora da liderança corajosa é agora. A história está sendo escrita neste exato momento. No fim, todos nós somos arquitetos do que deixamos para trás.”

Fotos: Marcos Mesquita

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