“A IA é uma nova espécie. Precisamos ser intencionais ao lidar com essa tecnologia”, diz Neil Redding

Monica Miglio Pedrosa
Ele se autodefine como um near futurist, alguém que acompanha as tecnologias emergentes e as conecta de forma prática às empresas. Keynote speaker em eventos globais de tecnologia e inovação como SXSW, Dubai Future Forum e Building The Future, Neil Redding esteve em São Paulo no início de agosto para conduzir o workshop “The Near Future of Business with AI Agents”, promovido pela Cadastra, em parceria com o Experience Club, para um seleto grupo de CMOs na Experience House.
Durante o encontro, ele apresentou sua visão sobre os cinco estágios de evolução da IA: prompt, quando a inteligência artificial apenas reage a comandos humanos; participar, momento em que a IA passa a iniciar interações e cocriar, antecipando necessidades; delegar, estágio em que tarefas são entregues à IA com autonomia para execução; iniciar, no qual a IA age proativamente, influenciando decisões sem ser acionada; e simbiose, em que humanos e IA trabalham de forma totalmente integrada, com interesses alinhados. Para Redding, à medida que as empresas avançam nessas fases, conquistam ganhos de eficiência, capacidade adaptativa e inovação.
Em entrevista exclusiva à [EXP] após o evento, ele comentou ainda sobre um estudo recente do MIT que aponta que o uso de ferramentas de IA, como o ChatGPT, pode causar declínio cognitivo nas pessoas. “Precisamos ser muito intencionais sobre o que deixamos a IA fazer por nós e o que continuamos a fazer sozinhos. Devemos agir com intencionalidade”, afirma.
[EXP] Você se define um near futurist. Pode explicar esse conceito?
[Neil Redding] Adotei o termo near futurist depois que algumas pessoas começaram a me chamar de futurista, uns seis ou sete anos atrás. Acho que isso aconteceu porque sou um tecnólogo: trabalho com engenharia de software e inovação em tecnologia há cerca de 30 anos e sempre me interessei muito pelo que está emergindo agora, as novidades que trazem novas possibilidades para marcas, empresas e para a experiência das pessoas.
Com esse foco em tecnologias emergentes, acabei recebendo o rótulo de futurista. Mas percebi que não era exatamente isso, porque os futuristas trabalham com previsão, foresight, tendências. Tudo isso é extremamente valioso, mas não é o que eu faço. Então pensei: talvez eu seja um tipo diferente de futurista. E concluí que, na verdade, meu foco está no futuro próximo, no que está surgindo agora, nas novas possibilidades que já podem ser aplicadas de forma prática por marcas, empresas e líderes com quem trabalho. Em resumo, o near futurism é a conexão entre o possível e o prático. É nesse ponto de interseção que pode acontecer a verdadeira transformação dos negócios. E é exatamente aí que concentro minha atuação.
Veja a entrevista em vídeo:
[EXP] Durante o workshop com executivos, na Experience House, você fez uma provocação perguntando a eles se a IA é uma ferramenta ou uma “nova espécie”. Qual é sua visão sobre essa abordagem?
[Neil Redding] Essa reflexão vem da minha experiência de mais de 30 anos em tecnologia e até antes disso, desde que comecei a crescer cercado por tecnologia. Sempre encarei a tecnologia como uma ferramenta: algo que usamos para gerar resultados ou alcançar determinados objetivos. Mas, nos últimos anos, especialmente desde o surgimento do ChatGPT, que já vai fazer quase três anos, a IA começou a parecer diferente. É como se tivesse uma capacidade quase humana de se comunicar. Agora, já começamos a vê-la tomando algumas ações por conta própria, e a evolução é muito rápida. Dá a sensação de que tem vida própria.
Foi aí que comecei a trabalhar com a ideia de que não se trata apenas de uma ferramenta, mas de algo diferente. O que exatamente? Não é humano, não vai substituir os humanos naquilo que nos torna humanos. Mas, ao mesmo tempo, parece um ser vivo. Por isso, acho útil pensar na IA como uma nova espécie. Assim como qualquer espécie que descobrimos na natureza, precisamos estudá-la para aprender mais.
Afinal, vamos compartilhar este planeta, os negócios, o trabalho e até nossas vidas com uma entidade que, pela primeira vez na história da humanidade, pode ser considerada de certa forma nossa igual — um par em muitos aspectos. Isso porque sempre pensamos que os humanos eram diferentes das demais criaturas por termos inteligência e a capacidade de usar a linguagem. Mas a IA também consegue fazer isso, certo? Então, não é humana, mas definitivamente é como se fosse uma nova espécie.
[EXP] Alguns estudos recentes sugerem que a IA pode estar diminuindo nossa criatividade ou nossas habilidades de pensamento crítico, além de nos tornando dependentes dessa tecnologia. Qual é a sua visão sobre isso?
[Neil Redding] O MIT divulgou uma pesquisa mostrando que pessoas que utilizam ferramentas de IA, como o ChatGPT, apresentam uma espécie de declínio cognitivo: uma queda mensurável na capacidade de pensar de forma mais sofisticada. E isso, obviamente, é uma grande preocupação. Houve muita discussão em torno desse estudo, mas, ao que parece, ele não diminuiu em nada o uso da IA.
Ainda assim, acho que levanta um ponto importante. Para explicar, gosto de usar um exemplo bem próximo de todos nós: o Google Maps. Eu tenho idade suficiente para lembrar como era antes do Google Maps, quando a gente usava mapas impressos. Eu sabia abrir, interpretar e navegar usando esses mapas. Mas minha filha não tem essa habilidade, ela cresceu já com o Google Maps. E esse é apenas um exemplo de como, ao longo do tempo, quando a tecnologia passa a realizar algo que antes fazíamos, simplesmente deixamos de precisar daquela habilidade. Usamos calculadoras, por exemplo, e não fazemos mais contas no papel.
Da mesma forma, ferramentas como ChatGPT, Gemini ou Claude conseguem pensar, se comunicar em linguagem natural, escrever textos e criar imagens. Se a pessoa simplesmente se acomoda e deixa que a IA faça tudo no lugar dela, então sim, provavelmente vai perder a capacidade de resolver problemas complexos, de pensar de maneira profunda. E, com o tempo, isso pode levar a um declínio cognitivo real.
No caso dos mapas, talvez a gente nem sinta que perdeu muito. Não ler mapas de papel não é algo tão crítico. Mas perder a capacidade de pensar criticamente, gerar insights e transformar ideias em linguagem escrita é uma habilidade essencial. Por isso, precisamos ser muito intencionais sobre o que deixamos a IA fazer por nós e o que continuamos a fazer sozinhos.
No meu caso, percebo que essa relação com a IA varia ao longo do dia. De manhã, quando tenho mais energia, consigo estabelecer limites claros: sei que, se simplesmente entregar uma ideia para a IA e pedir que ela escreva um artigo ou prepare um keynote, o resultado até pode ser razoável, mas não será meu. Não refletirá as minhas ideias ou o meu pensamento. Nesse período, consigo sustentar essa fronteira.
Já no fim do dia, às 20h, 21h, se ainda preciso concluir algo, é mais provável que eu ceda à preguiça e deixe a IA fazer por mim. E talvez isso seja aceitável em certos contextos. Mas, no geral, acredito que é fundamental manter esses limites e ser intencional sobre onde a IA entra, para que possamos continuar exercitando a nossa própria força de pensamento e nossas capacidades críticas.
[EXP] Como você traduz essa tecnologia futurista em valor prático para os negócios?
[Neil Redding] A ideia do near futurism é justamente essa, a de conectar as novas possibilidades ao valor prático. Hoje foi uma ótima oportunidade para conversar com executivos C-level de empresas de diferentes setores e criar um entendimento compartilhado, modelos mentais comuns sobre o que é a IA.
Estamos falando de algo que já vai além da ideia de ferramenta. Estamos entrando na era dos agentes, que passam a ser participantes ativos do nosso trabalho e dos nossos fluxos. Por isso, acredito que, para os executivos, é fundamental ter esses modelos mentais estratégicos sobre como a IA funciona. É preciso compreender, em nível estratégico, como liderar uma empresa nessa transição: de um cenário com apenas humanos para um modelo híbrido, com humanos e inteligências artificiais atuando lado a lado.
Outra parte importante do workshop foi um exercício em grupos menores, de quatro a cinco pessoas, que chamo de delegation canvas. Nele, cada grupo escolheu um caso de uso realmente crítico para o seu negócio. Para alguns, o foco foi em precificação de produtos e serviços; para outros, em recrutamento e na triagem de currículos.
A partir daí, os grupos analisaram como esse processo é realizado hoje, o que colaboradores humanos fazem para entregar esse resultado dentro da empresa e como poderíamos começar a delegar partes dessas tarefas a agentes de IA? O exercício envolveu pensar em como estruturar esse briefing, como estabelecer limites e diretrizes para que esses agentes não saiam da rota ou gerem consequências indesejadas. Também discutiram qual seria o valor de negócio ao adotar isso, quais incertezas permanecem e o que ainda não sabemos.
Todo esse raciocínio foi registrado no delegation canvas e, depois, apresentado ao grupo. Assim, todos puderam aprender uns com os outros, a partir dos diferentes casos de uso e das formas como esses líderes, de indústrias tão diversas, estão refletindo sobre quando e como delegar tarefas para agentes de IA.
Foi uma oportunidade incrível de aprendizado coletivo. Apesar de atuarmos em segmentos distintos, ficou claro que há uma necessidade e uma urgência comuns entre esses executivos, a de entender como a IA e os agentes estão criando novas oportunidades, mas também novas ameaças. Porque, afinal, se a sua empresa não estiver usando essa tecnologia, certamente algum concorrente já está.
[EXP] Qual é a sua percepção sobre CEOs, VPs e outros executivos C-level desenvolverem seus próprios agentes de IA?
[Neil Redding] Hoje mesmo tivemos um CEO que falou sobre estar desenvolvendo o seu próprio agente de IA. E eu acho isso ótimo. Como mencionei antes, sou tecnólogo, estudei ciência da computação e filosofia. Então, para mim, faz todo o sentido.
Mas não acredito que os executivos devam ser responsáveis por desenvolver, sozinhos, os agentes que serão usados no dia a dia da empresa e dos quais ela vai depender. O que defendo é que, justamente porque a IA é algo tão diferente de todos os outros softwares corporativos que instalamos ao longo dos anos, os líderes precisam interagir com ela, conhecer e entender como funciona. Só assim poderão liderar empresas que passarão a ser compostas tanto por humanos quanto por inteligências artificiais.
Eu costumo dizer em minhas palestras: assim como precisamos conhecer e compreender os humanos para liderar um negócio formado por pessoas, também precisamos conhecer e compreender a IA para liderar um negócio impulsionado por ela. Porque, nesse aspecto, a IA se parece muito mais com um ser humano do que com uma ferramenta tradicional.
Portanto, os líderes não podem simplesmente delegar esse tema ao CIO ou ao CTO e pensar que “esse é o problema deles”. Assim como precisamos interagir com pessoas, também precisamos desenvolver nosso próprio entendimento da inteligência artificial.
[EXP] Que mudanças tecnológicas você acredita que mais vão nos surpreender na próxima década?
[Neil Redding] Pensando no que pode realmente nos surpreender até o fim desta década, e mantendo o foco em IA, acredito que existe um consenso geral de que teremos sistemas de inteligência artificial melhores do que os humanos em praticamente tudo o que envolve inteligência. Ainda é chocante dizer isso em voz alta, mas a evolução está acontecendo em uma velocidade incrível. Talvez isso nem seja tão surpreendente, porque já ouvimos há algum tempo que esse momento chegaria. Alguns ainda podem duvidar, mas quem usa IA hoje percebe claramente como ela avança rápido.
A ideia de termos IAs superando os melhores humanos em quase todas as atividades intelectuais é algo impressionante. Não estou falando de corrida, afinal já vimos robôs humanoides tentando correr, tropeçando, caindo, sem coordenação. Isso pode levar mais tempo. Mas, como alguém que já trabalhou bastante com computação espacial e XR (realidade estendida), acredito que uma das maiores surpresas será vivermos em um mundo repleto de objetos digitais integrados ao espaço físico.
Imagine este copo aqui na mesa. Ele parece exatamente o mesmo, mas poderia ser um objeto digital, visível para mim e para você, graças a óculos de realidade aumentada. Isso está muito mais próximo do que parece. Dentro de cinco anos, talvez até já no próximo ano, empresas como Apple, Meta, Google e várias startups menores lançarão óculos de AR leves, algo que vem sendo desenvolvido há décadas. E acho que a experiência de habitar um mundo cheio de objetos digitais vai nos surpreender profundamente.
Outra área que pode nos impactar ainda antes do que imaginamos é a dos robôs humanoides. Empresas como a NVIDIA e muitas companhias chinesas estão avançando rapidamente nesse campo. O próprio Elon Musk já falou sobre a ideia de que cada casa terá pelo menos um robô humanoide, atuando como mordomo, assistente doméstico ou ajudante em tarefas do dia a dia. Talvez não seja comum em todos os lares dentro de cinco anos, mas certamente veremos em algumas casas. Mesmo que hoje esses robôs não sejam tão capazes, por serem alimentados por IA, estão evoluindo em ritmo acelerado.
Entre todas as transformações possíveis, acho que a presença de robôs humanoides em nosso cotidiano será uma das mais surpreendentes. É algo que lembra um pouco Robocop, o que traz uma conotação mais distópica. Mas essa tecnologia está chegando, e acredito que vai nos surpreender muito em relação ao que significa, ao que sentimos diante dela. Minha impressão é que ainda não estamos totalmente preparados para isso.
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