“Só quem vive a exclusão tem facilidade para entender o que é isso”
Danielle Torres, sócia da KPMG Brasil, fala sobre as consequências da falta de diversidade nas empresas.
Por Monica Miglio Pedrosa
Eleita uma das 500 pessoas mais influentes da América Latina pela Bloomberg em 2021 e novamente em 2022, Danielle Torres tem expertise em contabilidade, auditoria e ciência de dados e é sócia de práticas profissionais da KPMG Brasil. Além disso, é vice-coordenadora técnica do Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS), órgão criado pelo Conselho Federal de Contabilidade que está definindo os padrões de divulgação de informações de sustentabilidade nos relatórios financeiros corporativos. Em 2021 iniciou um Master of Science em Analytics pelo Georgia Institute of Technology. Mesmo com todo esse currículo, a executiva costuma ser conhecida apenas por sua transição de gênero, como ela conta na autobiografia “Sou Danielle: Como me tornei a primeira executiva trans do Brasil”, lançada em agosto deste ano pela Editora Planeta.
Nessa entrevista ao [EXP], Danielle fala sobre os preconceitos que viveu desde a adolescência, quando era convidada por colegas a “ser mais masculino”, a decisão pela afirmação de gênero após um período em que desenvolveu transtorno do pânico e o processo de aceitação de sua identidade de gênero no mercado corporativo. “Fui preparada para pedir demissão, mas a empresa me surpreendeu e disse que me apoiaria institucionalmente nesse processo”, revela.
A executiva conta que sua tese de mestrado irá abordar o uso ético dos dados e sua aplicação nos negócios. “Hoje os conteúdos que consumimos nas redes sociais são determinados por algoritmos de curadoria de conteúdo. A pessoa acaba se relacionando apenas com outras que pensam como ela, o que cria uma bolha de autoafirmação que fragiliza o ego. Elas não conseguem mais lidar com frustrações”, acredita.
Em que momento você resolveu assumir sua identidade de gênero para a empresa?
Quando ingressei no mercado financeiro, no início dos anos 2000 não havia muito espaço para isso. Se eu fosse usar a terminologia atual, eu seria alguém com gênero fluido. Quando comecei a trabalhar, aos 20 anos, meus colegas falavam que eu “precisava virar homem”, pois minha aparência era feminina, minha voz não era adequada, então na medida do possível fui me adaptando. Vivi uma década nesse “personagem masculino” até o ponto em que se tornou impraticável. Perdi minha saúde, desenvolvi transtorno do pânico, não conseguia nem sair de casa.
Nesse momento decidi falar com a empresa e fui preparada para pedir demissão. Só que nesse período de 10 anos muitas coisas mudaram, a diversidade começou a virar pauta das organizações. Meu pedido de demissão virou na verdade uma conversa bem diferente do que eu esperava. A empresa me apoiou institucionalmente no processo.
“Quando resolvi falar com a empresa
sobre minha afirmação de gênero,
o plano era pedir demissão.
A empresa não só não aceitou como me apoiou
institucionalmente nesse processo.”
E como foi esse processo?
Para mim eu estava basicamente resgatando a pessoa que eu era. Mas entendo que para as pessoas que trabalhavam comigo e me conheceram dos 20 aos 30 foi uma grande transformação. Ao final, foi um processo de aprendizagem mútua, tanto para mim como para a organização.
Jamais imaginei que esse assunto ia tomar tamanha dimensão na minha vida. Todo mundo só queria falar sobre isso. Havia a pressão dos colegas, da sociedade, das mídias… acompanhada de perguntas extremamente invasivas. Fiquei extremamente cansada.
Foi quando resolvi trabalhar em Nova York, que é o lugar mais diverso do planeta, inclusive em termos de legislação. Quando cheguei lá as pessoas já conheceram a Danielle, ninguém sabia que eu tinha feito transição. Nunca escondi sobre ser trans, mas lá não existia esse registro anterior de quem eu era.
Quando você voltou, encontrou um grau de maturidade maior nas organizações sobre diversidade?
Quando voltei ao Brasil o assunto da minha transição já era “velho” e eu podia falar sobre o tema, mas desempenhando um papel social, com a liberdade que eu acho que é devida. Porque não deixa de ser transfóbico a gente tratar uma pessoa trans somente a partir do gênero.
Em relação à diversidade nas organizações, essa é uma jornada heterogênea. Existem empresas que estão mais avançadas na pauta ESG e outras que insistem em dizer que não é tão importante. Aliás existem empresas extremamente maduras no tema e que já estão dando show no Brasil.
Na sua visão, por que é difícil para algumas empresas adotarem práticas efetivas de inclusão?
Porque as pessoas que tomam as decisões sempre estiveram incluídas, então é muito difícil elas terem a dimensão do que é a exclusão. Só quem vive a exclusão tem uma facilidade enorme para entender o que é isso.
Então por que negros e pessoas trans entram numa organização mas não chegam a posições de liderança? Porque o ser humano tende a reconhecer os seus iguais. Tendemos a olhar para a pessoa e ver quem se parece comigo, isso é inconsciente.
Como podemos conscientizar as pessoas sobre essa exclusão?
Falo muito sobre isso em minhas palestras. Há uma dificuldade de entender tanto a exclusão como o privilégio. Percebo que essa palavra privilégio incomoda algumas pessoas. Porque uma pessoa branca, cisgênero, heterossexual, com filhos, que é o padrão do que é socialmente aceitável, também teve que batalhar muito para chegar aonde chegou. Então quando falamos em privilégio parece que estamos desmerecendo essa pessoa. Não é esse o caso, só precisamos reconhecer que o ponto de partida é diferente.
Aliás, eu falo que sou extremamente privilegiada e tenho consciência disso. Sou branca, nasci numa família de classe alta, estudei nas melhores escolas do país, aos 20 já era fluente em dois idiomas, trabalhei em vários países. Sou muito privilegiada. Reconhecer que tive privilégios só me faz pensar em como dar oportunidades para as pessoas que não os tiveram.
“Quando falo em privilégio percebo que
incomodo alguns executivos.
É como se eu desmerecesse todo o esforço
para chegarem aonde estão, quando na verdade
só estamos reconhecendo que o
ponto de partida deles foi diferente.”
Até porque lidar com a diversidade é uma habilidade que a empresa precisa ter para conversar com todos seus clientes, já que a sociedade é extremamente diversa.
Tem uma metáfora da fila de entrada da classe executiva nas companhias aéreas que é perfeita para ilustrar isso. Como eu viajo muito a trabalho, vou de executiva. E as companhias aéreas precisam entender que pessoas trans também viajam de executiva. Inúmeras vezes estou na fila do embarque e um funcionário vem me dizer que estou na fila errada. Eles não me percebem como alguém de classe executiva, por quê? Porque não é esperado que uma pessoa trans viaje de executiva.
A metáfora é que geralmente quem está na classe executiva são os maiores tomadores de decisão das empresas. E se eles se sentem na liberdade de me tirar da classe executiva do avião certamente se sentirão na liberdade de me tirar da fila de pessoas que estão prontas para uma posição de liderança numa organização.
É nesse sentido que precisamos sensibilizar as pessoas que são detentoras do poder que a reação inicial delas vai ser a de tirar a pessoa “diferente” da fila. Só que o gestor está na organização para reconhecer as pessoas mais talentosas, independentemente de como ela seja.
“Gosto de usar a metáfora da fila de entrada
da classe executiva do avião,
o mesmo que acontece nos cargos de liderança.
Não é esperado ver uma pessoa trans nessa posição.”
Por isso a importância de as empresas trazerem pessoas diversas para cargos de liderança, para os Conselhos de Administração das empresas.
Claro! Imagine em empresas de varejo, que atendem consumidores extremamente diversos. Se não há diversidade na liderança vemos acontecer os famosos “equívocos” de estratégias de marketing inexplicáveis. Porque não houve uma mentalidade diversa para pensar sobre o problema e quem está fora do problema não o percebe como tal.
No exemplo da companhia aérea, faltou treinar os funcionários da classe executiva de que pessoas trans também são seus clientes. Porque eu pago meus impostos como todo mundo e quero ter uma experiência melhor como cliente e como cidadã.
Você foi recentemente nomeada vice-coordenadora técnica do Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS). Qual a atuação deste Comitê?
O CBPS estuda as normas de sustentabilidade, é um equivalente do ISSB (International Sustainability Standards Board) sediado em Londres. Estamos desenhando os padrões de divulgação contábil para informações de sustentabilidade nos relatórios financeiros das empresas. Assim como na contabilidade clássica, estamos detalhando os procedimentos de governança e controle para evidenciar as boas práticas de ESG no relatório sustentável das empresas. Essa vai ser uma grande transformação para nossa profissão e para o mercado.
Você está fazendo um Master of Science em Analytics pelo Georgia Institute of Technology. Por que o interesse por esse tema e qual será a linha da sua tese?
O interesse inicial no tema veio de uma curiosidade que tive em 2010, com o surgimento da inteligência artificial e a narrativa de que muitas profissões iriam acabar, inclusive a relacionada à minha formação em Ciências Contábeis. Antes de entrar no mercado financeiro como auditora eu já havia me aventurado a programar em Visual Basic, C++ e Java, portanto já tinha conhecimento sobre programação.
No mestrado entendi que essa “aprendizagem de máquina” é na verdade aprendizagem estatística. Em outras palavras, a IA cria modelos matemáticos em que é possível parametrizar tecnicamente o que se chama de multiplano de decisão e estatisticamente ela constrói alguns nós de probabilidades para dar uma resposta. A máquina compara os resultados de um multiplano com os dados reais e aprimora seu próprio multiplano.
Comecei a me interessar então sobre o viés dos algoritmos e devo inclusive me aprofundar no doutorado sobre isso, abordando a ética do uso e da aplicação dos dados pela IA.
O seu mestrado acaba se conectando com o tema das relações sociais e com os vieses no uso da tecnologia.
Eu gosto muito de fazer uma analogia com o filme Matrix. As pessoas costumam me perguntar: quando é que a Matrix vai ser ligada? Eu respondo que ela já foi ligada há 10 anos, chama-se redes sociais e algoritmos de curadoria de conteúdo. Atualmente as máquinas decidem o que a gente consome, qual é a nossa opinião, com quais grupos a gente se agrega.
Você acaba sendo exposta a tipos de conteúdos semelhantes aos que você consome, o que cria uma bolha de autoconfirmação. Ou seja, todo mundo aparentemente pensa igual a você, só que isso vai fragilizando muito o ego e não conseguimos mais lidar com a frustração, com alguém que pensa diferente. Isso para mim é efeito dessa Matrix. E a gente vai ter de aprender a lidar com isso à medida que a tecnologia se desenvolve. No meu mestrado vou investigar filosoficamente a questão e tentar compreender socialmente aonde isso vai nos levar como sociedade. E alertar as pessoas.
“Nas redes sociais, os algoritmos
determinam o que a gente consome.
Isso cria uma bolha de autoconfirmação que fragiliza o ego.
Não conseguimos mais lidar com a frustração.”
Alertar sobre o quê?
Nós estamos em uma relação simbiótica com as redes sociais e se o Metaverso efetivamente descolar do papel vamos ficar literalmente simbióticos com a tecnologia.
Hoje o Google é um grande oráculo, ninguém consegue fazer mais nada sem antes digitar no buscador, ou ouvir sua rede de contatos, seu influencer no caso das gerações mais novas.
E quem faz a curadoria de conteúdo de tudo isso? Um grande algoritmo. Na faculdade eu desenvolvo multiplanos simples com 12 dimensões. É quase impossível de compreender como ele está funcionando e tomando as decisões nesse nível. Nós humanos compreendemos facilmente duas dimensões, é o tal plano cartesiano. Uma terceira dimensão também conseguimos visualizar, mas já fica mais difícil entender por exemplo as informações extraídas de um gráfico 3D.
A partir da quarta dimensão não conseguimos sequer representar graficamente esse algoritmo. Imagine um algoritmo de inteligência artificial que constrói multiplanos matemáticos de vigésima dimensão. É algo impossível de nós, humanos, decifrarmos como as decisões estão sendo feitas nesse nível.
Como podemos nos preparar para os desafios que essa realidade se apresenta?
É importante dizer que não estou atacando a tecnologia. Muito pelo contrário. Sou usuária frequente de TI, adoro os meus algoritmos. Mas temos que tomar consciência dos nossos direitos fundamentais, o direito sobre nossos dados, o direito sobre a réplica em relação a uma decisão automatizada em determinados contextos.
Hoje já existem algumas jurisdições sobre isso. Se um processo de empréstimo é decidido por um algoritmo, temos que poder exigir que um humano avalie essa decisão em algum momento. Essa ética está sendo desenhada à medida que a tecnologia se desenvolve, seja para o reconhecimento facial, seja para o uso de nossos dados biométricos.
Temos que ter a consciência de que nossa rede social não espelha a representatividade do mundo. Na minha rede social, por exemplo, a diversidade já está completamente resolvida e sabemos que isso não é verdade no mundo real.
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