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Os hospitais terão que se preparar para as tragédias climáticas, diz CEO do HCor

Monica Miglio Pedrosa

Uma decisão tomada logo ao sair da faculdade de Economia levou Fernando Torelly a iniciar sua carreira no setor de saúde – e permanecer nele até hoje. Ele trabalhava na Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul e tinha duas propostas de emprego para escolher: em uma metalúrgica ou como chefe de recrutamento e treinamento no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. A escolha pela segunda foi a mais óbvia, inclusive por uma situação pessoal. “Na minha adolescência, meu pai sofreu um grave acidente e ficou sete meses internado. Eu conhecia muito bem o Hospital de Clínicas, que era próximo da minha casa.”

Fernando havia se identificado com a disciplina de gestão de pessoas na faculdade e essa afinidade também o ajudou na decisão. Desde então, ele construiu uma carreira no setor, passando pelo Hospital Moinhos de Vento em seu estado natal até decidir vir para São Paulo, em 2016, quando assumiu como Diretor Executivo do Hospital Sírio-Libanês. Após uma breve passagem pela Unimed, ele se tornou CEO do HCor em janeiro de 2020. “É muito importante ter tanto a visão de números do negócio como a dimensão de liderança de pessoas, particularmente em um hospital, que é um local em que há gente cuidando de gente.”

O HCor é uma instituição filantrópica que tem como mantenedora a centenária Associação Beneficente Síria. Além do escopo hospitalar, ela atua com serviços como Centro de Infusões, Consultoria, Centro de Diagnósticos, Instituto de Pesquisa e HCor Academy, que forma profissionais de saúde. O HCor tem hoje cerca de 3.200 colaboradores e 2,3 mil médicos credenciados e em 2023 realizou 53,3 mil atendimentos no pronto-socorro e 12 mil internações. Tem 287 leitos e suas principais especialidades são cardiologia, oncologia, neurologia e ortopedia.

Nessa entrevista à [EXP], Fernando, que é gaúcho, fala sobre a necessidade de uma revisão da importância de planos de evacuação em hospitais, em função da tragédia climática do Rio Grande do Sul e de outras que virão, a crise das operadoras de saúde e seu impacto nos hospitais e a importância da tecnologia para acelerar a interoperabilidade do setor.

[EXP] Fernando, teve alguma escolha na sua carreira que você considera decisiva para sua jornada profissional?

Fernando Torelly – Acredito que experiência em gestão de pessoas é fundamental para a cadeira de CEO. Me tornei um porque fui gerente de RH no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Nessa época, eu tinha um conflito muito forte com a direção do hospital, que não valorizava os projetos de RH que apresentava. Tomei a decisão de que um dia seria o vice-presidente do hospital para implementar o que eu acreditava. Fui fazer mestrado, me qualificar para isso, fiz pós em Administração Hospitalar e depois em Recursos Humanos. Quando vi que não havia perspectiva de chegar à Vice-Presidência resolvi sair para ser gerente de RH em outro hospital. Oito meses depois me convidaram de volta como Vice-Presidente Administrativo. Se eu não tivesse tomado essa decisão corajosa, disruptiva, estaria me aposentando hoje como gerente de RH e frustrado porque meus projetos não estavam acontecendo. 

Depois vim para São Paulo com um convite para ser o Diretor Executivo do Sírio-Libanês. Isso há 8 anos, já estou há quatro ano e meio como CEO do HCor. Tenho uma teoria de que você não deve ficar mais que cinco anos no mesmo lugar pois acaba perdendo a visão crítica do que funciona bem e do que não.

Você assumiu o HCor e dois meses depois veio a pandemia. Como foi lidar com esse desafio? Quais foram os aprendizados que ficam deste período?

Fernando – Se eu tivesse continuado na Unimed teria passado a pandemia fazendo home office e seria certamente uma pessoa muito frustrada. Tive a oportunidade de viver a pandemia no hospital. Tivemos muitos aprendizados, várias coisas mudaram com a pandemia. Nosso processo de comunicação foi radicalmente modificado. Antes ele era hierarquizado e eu brinco dizendo que rasgamos o organograma e fizemos o “funcionograma”, que é do jeito que as coisas funcionam.

Vivemos um regime de guerra, as pessoas tinham que estar empoderadas, com autonomia e responsabilidade para fazer as coisas acontecerem no tempo necessário. Também era preciso muita resiliência, porque durante a pandemia quem esteve no comando foi o vírus. Isso criou um ambiente de solidariedade e de parceria, um hospital se conectava ao outro para trocar informações.

De certa forma isso está acontecendo no Rio Grande do Sul, com a tragédia humanitária. Como você tem se mobilizado para apoiar os hospitais de lá?

Fernando – Já fui várias vezes para o Rio Grande do Sul, estamos montando um projeto para apoiar os hospitais de lá. Eles eram subfinanciados, com estrutura precária, problemas de gestão e veio a Covid. Acreditávamos que houve um aprendizado, mas tudo continuou exatamente como estava antes da pandemia. E aí veio a enchente do Rio Guaíba.

A maioria dos hospitais não tem um plano de evacuação. Em boa parte deles a infraestrutura de energia elétrica é sucateada. E o problema climático do Rio Grande do Sul pode acontecer em qualquer outro lugar do Brasil. A pergunta que fica é: como nós, como sociedade, vemos a importância de um equipamento chamado hospital onde você nasce e morre nele? O quanto estamos aprendendo com as grandes tragédias? Estamos falando agora de reconstrução, a pergunta que fica é: vamos reconstruir no mesmo lugar, nas mesmas condições?

Falando em sustentabilidade do setor de saúde, especialmente do ponto de vista das operadoras de saúde, qual é sua visão sobre os possíveis caminhos de saída para essa crise?

Fernando – No Brasil, a população 60+ vai dobrar de 2010 a 2035. A França levou 140 anos para dobrar sua população idosa. Vamos nos tornar um país com a população idosa equivalente à dos países europeus, sem o enriquecimento de lá. Enquanto na Europa se investe de US$ 5 a 7 mil dólares per capita/ano em saúde, no Brasil o investimento é de R$ 1.800 per capita. Com o envelhecimento da população, vêm as doenças crônicas.

É preciso mudar o modelo de cuidado do idoso, fazendo coordenação, investindo em atenção primária. Se não ele vai ter a carteirinha do plano e vai recorrer a um pronto-socorro quando ficar doente, porque nem médico de referência ele costuma ter e o hospital vai ter de fazer um monte de exames para descartar a hipótese diagnóstica. Isso custa caro. Além do envelhecimento, tem a questão das fraudes, as operadoras tiveram prejuízo de R$ 5 bilhões em 2023. O resultado é que elas estão descredenciando os hospitais e aumentando as glosas [não pagamento de um procedimento por parte das operadoras].

Existe solução?

Fernando – Temo que tudo que está sendo feito hoje, o aumento dos planos das empresas em 20%, aumento do prazo de pagamento para os hospitais, não irá resolver o problema, pois não estamos mudando o modelo de como cuidamos das pessoas, principalmente dos idosos. Eles precisam ter uma coordenação de cuidado, assegurar que o idoso está tomando remédio, fazendo as vacinas, os exames obrigatórios. Só que como a situação das operadoras é muito grave, elas estão com uma agenda de curto prazo. E o cuidado preventivo é algo de médio e longo prazo. Não estamos mudando nada de forma estruturante. É preciso uma revolução do modelo de cuidado e uma revolução tecnológica.

O open health seria uma possível saída?

Fernando – No Brasil, o médico do posto de saúde não conversa com o médico do hospital.  É preciso integrar o cuidado começando pelo prontuário médico, que tem a informação de saúde do paciente em todas as instâncias pelas quais ele passou. Várias iniciativas estão sendo feitas nesse sentido, mas não na velocidade que precisamos. Há 15 anos participo de reuniões para discutir novos modelos de remuneração. Mas isso não avança. Está faltando clareza e decisão para sermos mais rápidos no uso da tecnologia, para garantir a interoperabilidade na saúde.

Que tecnologias vocês apostam no HCor?

Fernando – Os hospitais anteriormente registravam tudo em papel, aí eles foram informatizados. Agora tem inteligência artificial no sistema do hospital. Hoje, uma das maiores causas de burnout do profissional de saúde é o sistema de informática, porque ele passa mais tempo digitando do que cuidando do doente. Além do fato de que o médico não tem paciência e acaba não colocando tudo no sistema. Algumas tecnologias estão sendo lançadas com interatividade por voz, usando IA, o que vai permitir uma interação real time sem a necessidade de precisar digitar nada no computador. Aqui no HCor vamos usar a inteligência artificial no processo de tomada de decisão clínica. Isso vai ser uma super revolução que vai permitir que o médico, o enfermeiro, voltem a olhar para o doente.

E o quão perto isso está de se tornar realidade?

Fernando – Na Hospitalar, principal feira do Setor, que aconteceu em maio, os maiores provedores de sistemas já apresentaram plataformas interativas por voz, integradas com IA. O processo já começou, mas ainda não está implementado em larga escala. Vai vir numa velocidade muito forte. Quantas vezes eu vou pra casa, pro final de semana, e tenho que levar meu computador junto? Imagina quando não precisar mais viver grudado num computador e alimentar o sistema por voz? Ou estou em uma consulta e peço para ver os últimos artigos que saíram sobre determinada doença? Mais importante do que saber a resposta, o médico precisará saber fazer as perguntas certas e isso quem traz é o seu repertório.

Na sua visão, o que poderá ajudar a democratizar o acesso à saúde?   

Fernando – Participo de um projeto em que criamos uma associação sem fins lucrativos (Associação Voluntários da Saúde) onde doamos nosso tempo para instituições do Sistema Único de Saúde, como, por exemplo, um curso paro 130 CEOs das Santas Casas do Estado de São Paulo. O conhecimento é libertador, porque eles estão tendo aula com os CEOs dos principais hospitais do país. A democratização começa por dar oportunidades para que todo mundo possa estar capacitado para discutir essas questões.

Por que eu e esses CEOs estamos aqui agora em nossas posições? Porque tivemos oportunidades e as aproveitamos. Aquelas pessoas que vivem na periferia não têm a oportunidade. Temos que começar a capacitar as pessoas para poder democratizar. O maior indicador de saúde que cada um de nós tem não é a nossa genética, é o CEP onde a gente mora. Se você mora em Alto de Pinheiros [bairro de classe média-alta em SP] a média de idade para óbito é de 80 anos. Se você mora no extremo leste ou no extremo sul de São Paulo, a média de idade é de 54 anos, a mesma expectativa dos anos 1970 no Brasil.

E o que mais pode ser feito em relação aos hospitais que não têm recursos?

Fernando – Tenho dito que os empresários de uma cidade têm que adotar o hospital. Ter na sua cidade um equipamento de saúde é essencial. Não adianta ter uma cidade rica e o hospital sucateado. Nós, como sociedade, vamos ter de olhar para a área hospitalar de uma forma diferente.

Quais são os planos do HCor para este ano?

Fernando – Somos um hospital filantrópico e aplicamos R$ 76,4 milhões em 2023 (R$ 164 milhões entre 2021 e 2023) no PROADI-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde). Um dos programas é conectar todas as UPAs do Brasil em uma plataforma de telemedicina com médicos do HCor 24X7, conectando esse atendimento a um eletro local para auxiliar na detecção de infarto do paciente.

Temos vários projetos com a Prefeitura de São Paulo e o Ministério da Saúde como cirurgia intrauterina que permite corrigir a coluna de uma criança no útero da mãe, evitando que ela nasça paralítica, atendemos quatro casos mensais gratuitamente, mais quatro que são subsidiados por uma parceria com a Fundação do Banco do Brasil, totalizando oito procedimentos por mês.

Nosso problema hoje é que os pacientes nos querem mais do que nossa estrutura está preparada para atendê-los. Em 2020 tínhamos 250 leitos, estamos hoje com 295 e nosso projeto de expansão vai nos levar a 340 leitos. Apesar da procura, há um desafio de gestão, pois com as operadoras de saúde em crise e os hospitais lotados, temos de ser eficientes para gerar recursos para crescer nesse cenário.

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