"A crise está nos fazendo pensar no que queremos"
A pandemia mudou drasticamente a forma como o mundo enxerga o futuro. De repente, na marra, pessoas e empresas começaram a se dar conta de que o trabalho remoto funciona. Que é possível estudar à distância. Muitos experimentaram a conveniência e passaram a confiar no comércio online. Da mesma forma, governos foram postos à prova, e evidenciou-se o abismo entre ricos e pobres, os impactos da desigualdade na sociedade.
A Covid-19 teve o impacto destruidor e transformador de uma grande guerra, avalia o futurista suíço Gerd Leonhard. “A crise está nos fazendo pensar no que queremos. Nos próximos dez anos, teremos uma explosão tecnológica. E também teremos que fazer algo sobre o clima e as energias sustentáveis”, diz. Segundo ele, este e outros problemas que já estavam no radar, mas pareciam ainda meio abstratos, ganharam consistência e urgência.
Autor de livros como Tecnologia versus humanidade: o confronto futuro entre a máquina e o homem, Leonhard é atualmente um dos maiores futuristas da Europa. É também um otimista. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas atualmente por causa da pandemia, afirma que o futuro pode ser bem melhor. Basta vontade política tocar em grandes questões. Foi sobre esses desafios e oportunidades que ele conversou com o Experience Club.
Confira 13 insights extraídos da entrevista com Gerd Leonhard:
1 – Revisão do futuro
A Covid-19 fez com que mudanças que já estavam acontecendo ganhassem dimensão rapidamente. Isso vale para coisas boas e ruins. Tudo agora envolve tecnologia. Sabemos que podemos trabalhar, estudar, comprar coisas de casa. Sabemos também que temos que estabelecer compromissos por causa de situações de emergência. E a próxima emergência são as mudanças climáticas. Percebemos ainda problemas gerados pela desigualdade. A pandemia teve ainda consequência sobre o mundo político. Dirigentes que não se saíram bem na crise, eventualmente, serão substituídos. Como aconteceu com Donald Trump.
2 – Cenário pós-Covid
Os próximos dez anos vão ser anos um pouco caóticos e complicados, de mudanças muito rápidas. O mundo está atravessando uma grande crise, comparável a uma guerra. A crise está nos fazendo pensar no que queremos. Teremos uma explosão tecnológica. E teremos também que fazer algo sobre o clima e as energias sustentáveis. Sabemos que temos que fazer algo também em relação ao sistema econômico, para que os benefícios se estendam a mais pessoas. Para o Brasil, há dois caminhos. Encontrar soluções para se tornar uma potência global ou continuar a caminhar em círculos.
3 – Política no Brasil
As coisas chegaram a um ponto em que o país tem pouco a perder. Em momentos assim, é que se tomam grandes decisões. O Brasil tem problemas econômicos, de segurança e desemprego. Ao mesmo tempo, tem um grande problema com a Covid. Basicamente, este ano será um ano de decisão. As coisas provavelmente ficarão piores, antes de melhorarem, ao longo do ano. Mas, então, acho que haverá uma recuperação e um novo movimento político, na direção certa.
4 – Tecnologias do amanhã
Há dezenas. Uma das mais positivas são as tecnologias de baterias, energia solar e as energias integradas, que tornarão possível virarmos a chave para as energias renováveis. Talvez em dez anos tenhamos a fusão nuclear, e, em 20 anos, energia ilimitada. Outra tecnologia é a inteligência artificial. Na área de saúde, vamos finalmente analisar tudo sobre nós. Isso já está acontecendo, por causa da pandemia. E então vamos pegar todos os dados para descobrir como podemos nos prevenir para não ficarmos doentes. Cuidaremos da saúde, em vez de curar a doença. Temos big data, computação na nuvem, Internet das Coisas, computação quântica, reconhecimento de voz. Todas essas coisas já existiam. Mas agora estão funcionando de verdade. Os próximos dez anos serão cruciais também para nos protegermos do excesso de tecnologia, para evitar problemas como a manipulação através das redes sociais, por exemplo.
5 – Regulação das big techs
As companhias de tecnologia, como Facebook, Google, Alibaba e Baidu, são hoje mais poderosas que todas as companhias petroleiras e bancos juntas. Por serem tão poderosas, fazerem tanto dinheiro e estarem reunindo tantos dados sobre nós, devem ser reguladas, da mesma forma que bancos, companhias de telecom e companhias de petróleo. Quando existe esse controle sobre as pessoas, e sobre a mídia, e a internet, você precisa ter regras, contratos sociais, prestação de contas, taxações. Precisamos fazer isso agora.
6 – Capitalismo alternativo
Não há muitas alternativas ao capitalismo como lógica econômica. Mas o capitalismo está no fim de uma espiral. Usamos tudo o que pudemos para fazer dinheiro. Agora, temos os efeitos colaterais, como os causados pela tecnologia: perda de privacidade, manipulação, notícias falsas, desumanização. Se queremos viver em um mundo que não é apenas sobre dinheiro, temos que adotar uma abordagem mais ampla. Lucrar não pode ser o único objetivo. Precisamos de um capitalismo sustentável. A lógica econômica precisa ser adaptada para se enquadrar em uma missão mais ampla.
7 – O caminho da sustentabilidade
Qualquer companhia que não entender o quanto as pessoas, o planeta, o meio ambiente, e ter propósito são importantes, vai ser ignorada em algum momento. Nos Estados Unidos, já temos uma situação em que os 300 CEOs de grandes companhias assinaram uma declaração, chamada The Business Roundtable, sobre o que chamam de capitalismo de stakeholders, e não de shareholders. O propósito da companhia é fazer o stakeholder feliz. Isso inclui não apenas os acionistas, mas os trabalhadores, os parceiros e todos os outros. Já existe um mercado de ações assim. Ele é chamado de Mercado de Ações de Longo Prazo (LTSE, na sigla em inglês), em São Francisco. Especialmente por causa da Covid, hoje todos querem saber se as companhias estão fazendo a coisa certa. E fazer a coisa certa não significa mais apenas dinheiro. Ou igualdade, ou inclusão. Significa tudo isso.
8 – Lideranças do futuro
Os próximos dez anos vão determinar se a nossa espécie vai sobreviver e prosperar ou não. Temos que consertar a energia, o planeta, doenças, a forma como lidamos com a tecnologia. E temos todas as ferramentas disponíveis. Mas precisamos de líderes que entendam isso. E eles tendem a ser líderes que têm um pé no futuro. Se olharmos para lideranças bem sucedidas na crise da Covid, ao redor do mundo, e as bem sucedidas em geral, elas são mulheres, minorias e pessoas jovens. Não são populistas, não são homens brancos velhos. Essa é a tendência. Jacinda Arden, na Nova Zelândia, é um exemplo. Vejo muito mais mulheres chegando. Porque você realmente tem que entender muitas coisas, se você quer guiar um país, ou uma cidade. Precisa entender de pessoas, de tecnologia, do presente e do futuro. Isso vai exigir muita atenção. Requer uma mentalidade de futuro.
9 – Talentos mais humanos
Até agora, era clara a demanda por pessoas que sabiam planejar e executar um planejamento de forma eficiente e produtiva. Mas essa janela está se fechando. Porque com a pandemia descobrimos que importa ser produtivo se você não estiver preparado. E não importa se você estiver preparado, e os outros não. Temos que ter uma abordagem coletiva para grandes problemas. Agora, o que as empresas estão procurando são pessoas que conhecem tecnologia. Mas, acima disso, são seres humanos muito bons. É preciso negociar, criar, imaginar. Têm que ter intuição, visão. Essas são as habilidades humanas que as máquinas não terão. Ao menos não nos próximos 20 anos. Habilidades e inteligência emocional. Porque, em dez anos, um computador será capaz de fazer a metade de todos os nossos trabalhos. Esse é também o futuro da educação. Entender de tecnologia, é claro, mas voltar às humanidades. Filosofia, ética, esportes, música, arte, história.
10 – Eficiência e algo mais
Eficiência é sempre importante. Mas o objetivo agora não é ser eficiente apenas. O que queremos de verdade é resiliência, reinvenção, criação, transformação, fazer algo novo, criar novos negócios. Não apenas fazer os velhos mais rápido. E eu acho que muita gente não compreende isso, especialmente no Brasil, onde há uma mentalidade de produtividade, de fazer mais com menos pessoas. Em vez disso, deveríamos usar a tecnologia para criar coisas novas, que são possíveis apenas por causa da tecnologia. É o que as companhias de tecnologia fazem.
11 – Regulamentação tecnológica
Os problemas gerados pela tecnologia são, de muitas formas, como os gerados pelo álcool e as drogas. Muito de uma coisa boa é uma coisa muito ruim. Quando o álcool é consumido o dia inteiro, todos os dias, isso não é bom. Então, temos contratos sociais, temos leis e regulamentos para prevenir que esse problema se torne grande demais. Com a tecnologia, é a mesma coisa. Quanto mais nos conectamos, mais temos que nos proteger o que nos faz humanos. Leis de privacidade, o direito de se desconectar, à segurança digital, a ter os dados excluídos (opt out). Imagine, em cinco ou dez anos, quando seu DNA e tudo mais estiver na nuvem. É bastante claro que precisamos encontrar um meio termo. E este é o papel do Estado. Porque a ciência, a tecnologia e a indústria têm apenas um objetivo, que é o progresso. Mas nós temos outros. É aí que o Estado entra para proteger os cidadãos de excessos. E isso vai demandar muita sabedoria.
12 – Mudanças necessárias e impopulares
Vamos precisar de lideranças muito fortes na próxima década. Porque as questões que estão aí não são fáceis de resolver. Se vamos abordar as mudanças climáticas, significa que teremos que tirar dinheiro de outros lugares e propor uma taxa de carbono. Em alguns casos, vamos fazer menos dinheiro que antes. É como a Covid. Não podemos fazer certas coisas, porque é uma emergência. E, agora, essa emergência já dura um longo tempo. É como se estivesse se tornando normal. Se queremos abordar situações reais, temos que abordar com ações reais. E isso não vai ser muito popular, às vezes. Acho que isso é realmente algo que o Brasil deveria olhar, porque, de muitas maneiras, continua preso e tantas coisas da velha economia, como o setor de petróleo e gás. O futuro do Brasil não está nos recursos naturais. Está em seus recursos criativos.
13 – Renda básica
Ainda não chegamos ao ponto em que faria sentido para um país grande. Aqui na Suíça, tivemos uma votação. E 26% votaram favoravelmente. Seria possível. Mas, é claro, aqui é um mundo completamente diferente. O Brasil tem grandes números, muitas pessoas pobres. Seria uma discussão completamente diferente. A renda básica, ou alguma forma de taxa negativa, de complementação de renda para quem não ganha um mínimo suficiente, vai ser analisada profundamente e pode, eventualmente, se tornar uma alternativa, nos próximos anos. Mas isso só vai funcionar se a tecnologia chegar a um ponto em que haja uma produtividade e receitas muito altas, e sejamos capazes de financiar as pessoas que não têm um trabalho regular. Mas, em dez anos, claramente teremos uma situação em que não teremos que trabalhar como hoje. Ou nós teremos uma lógica diferente, em que dinheiro não seja equivalente a trabalho. Mas isso ainda está um pouco longe.
Texto: Dubes Sônego
Imagem: Reprodução
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