Empresas de call center investem em impacto social
Denize Bacoccina
Durante muito tempo, o carioca Marcio Araujo, morando fora do Brasil, queria voltar ao país e montar uma empresa que, além de lucro, gerasse impacto social. Ele tinha um projeto mais ou menos desenhado para atuar em comunidades da cidade natal, numa época em que o Rio se preparava para os Jogos Olímpicos e parecia que ia conseguir driblar a violência. “Queria criar um call center para fazer o dinheiro circular lá dentro, gerar renda e outros empreendimentos no entorno”, conta.
De volta ao Brasil, em 2016, Marcio virou sócio de uma empresa de contact center, a Uranet, mas não conseguiu levar adiante a ideia de instalação de unidades nas comunidades. “A empresa deu certo, eu a vendi em 2019 e fiquei com essa dívida moral comigo mesmo”, contou Marcio, que vendeu o negócio para a Konecta e se tornou CEO da empresa no Brasil. Com atuação em 23 países, a Konecta tem faturamento global de R$ 8 bilhões e 120 mil colaboradores, dos quais 10 mil no Brasil.
A esta altura, ele já tinha se mudado para São Paulo e, num evento do Experience Club, conheceu Mariana Marques, presidente da Amor Philia, ONG que atua com mães do Jardim do Colégio, em Embu das Artes, uma comunidade de 8 mil moradores na região metropolitana de São Paulo. Foi a oportunidade para colocar em prática seus planos. A Amor Philia, criada em 2020 por Mariana e Daniela Padrão, vice-presidente da entidade, queria não apenas atender às necessidades mais emergenciais das pessoas da região, mas criar um projeto que capacitasse as mulheres e permitisse que elas conseguissem uma renda. “Queríamos um projeto que não fosse só assistencialista, mas de transformação social”, conta Daniela.
Um estudo de 2019 com 350 mães que moravam no bairro mostrou que 93% delas estavam desempregadas e viviam de auxílio. São mulheres com idade média de 34 anos, algumas com 17 anos. A ONG focou, então, na capacitação e na busca de oportunidade de trabalho e renda para essas mulheres.
Hoje a empresa liderada por Marcio emprega 40 mães numa unidade instalada na própria comunidade, que atende três clientes. Elas trabalham perto de casa e, por causa do tempo de deslocamento reduzido, conseguem conciliar o trabalho com o cuidado com os filhos. Além disso, a renda tende a ficar dentro da comunidade, já que o consumo acontece no comércio local.
“Cada vez mais as empresas estão olhando para a sociedade. Empresas como a nossa, com 10 mil funcionários, têm que fazer algo pela comunidade e não é só dar dinheiro, é participar para mudar as coisas”, diz Marcio. “Quando eu vejo o sorriso daquelas mães eu vejo que valeu a pena. É um dos projetos que eu tenho mais orgulho”, diz Marcio, que está em busca de novos parceiros para ampliar o projeto. “A Konecta é um exemplo do que a gente busca hoje nas empresas”, diz Daniela.
A história da Konecta com a Amor Philia é um bom exemplo de como as empresas podem combinar sua atividade principal, atender bem os clientes e gerar resultados, com ações que tragam a melhoria das condições de vida da sociedade. No setor de contact center e BPO (Business Process Outsourcing, ou terceirização de processos de negócio), historicamente considerado uma porta de entrada de jovens com baixa qualificação ou sem experiência no mercado de trabalho, várias empresas têm feito ações com impacto social.
Conheça alguns exemplos:
Foundever e os refugiados
Terceira maior empresa do setor de contact center do mundo, a francesa Foundever tem 4,5 mil colaboradores na operação brasileira, liderada por Laurent Delache, francês radicado no Brasil há mais de 30 anos. Desses, cerca de 700 são estrangeiros, a grande maioria venezuelanos que deixaram o país por causa da grave crise econômica. A Foundever também emprega, em menor número, bolivianos, haitianos e africanos. A empresa é parceira do Pacto Global da ONU e da Acnur, a agência da ONU para refugiados e, a convite deles, Laurent esteve no ano passado em Pacaraima, em Roraima, na divisa com a Venezuela, onde testemunhou a Operação Acolhida, desenvolvida pelo governo federal na região
“Fiquei muito emocionado de ver. Tem crianças, jovens, pessoas não tão jovens, mães. Pessoas que deixaram suas famílias em busca de algo melhor. Pessoas que precisam mudar o destino de suas famílias e não conseguem enxergar futuro na Venezuela”, conta Laurent. A ONU estima que cerca de 7 milhões de venezuelanos, quase um quarto da população, tenham deixado o país nos últimos anos antes do agravamento da crise. Claro que uma pequena parte veio para o Brasil, mas ainda assim o número é significativo: no ano passado, a estimativa era de 10 mil pessoas entrando no país por mês no começo do ano, cerca de 400 por dia. Quando cruzam a fronteira, os venezuelanos são registrados, passam por avaliação médica, recebem documentação, preenchem um cadastro de ocupação e habilidades e ficam aptos a serem contratados por empresas brasileiras.
A contratação de venezuelanos é o típico caso ganha-ganha. A empresa precisava ampliar seu faturamento e expandir suas atividades. Foi então atrás de clientes com operações fora do Brasil. E é para essas empresas, com clientes nos Estados Unidos, México, América Central, América do Sul, que os venezuelanos trabalham, a maioria a partir de São Paulo, nas dependências da empresa ou em regime de home office. Hoje, são cerca de 700 a 750, trabalhando para 40 empresas. “Meu compromisso com a ONU é chegar a mil. Para isso eu dependo de ter clientes que queiram colocar o atendimento em espanhol no Brasil”, diz Laurent. “Não tenho pretensão de resolver o problema sozinho, mas tenho um compromisso de divulgar informações para outras empresas do setor e estimular que outros façam o mesmo”, afirma.
Entre os venezuelanos que vieram ao Brasil, alguns foram contratados antes mesmo de deixar a Venezuela, outros depois que atravessaram a fronteira. Todos recebem documentos brasileiros do governo e podem trabalhar legalmente no país. E é justamente o fato de trabalharem legalmente, mas com habilidades que não conflitam com os colaboradores brasileiros, que facilita a integração entre eles, diz Laurent. “Não teve nenhum estresse entre as equipes. Como os estrangeiros trabalham em outra língua, os brasileiros não ficam com aquela sensação de que estão tirando o emprego deles. E além disse brasileiros e venezuelanos são muito parecidos. Não houve nenhum choque cultural”, afirma.
Além dos estrangeiros, a Foundever tem uma proporção considerável também de outros grupos que têm mais dificuldade no mercado de trabalho, como pessoas com tatuagens, piercing, cabelos coloridos, LGBTQIA+ e um grupo de 20 pessoas que se declaram trans. “O contact center contrata talento, conhecimento e habilidades para falar ou escrever, não aparência. Temos uma diversidade muito grande, maior do que em outras atividades com contato direto com o consumidor”, diz Laurent.
A meta dele é continuar ampliando essa diversidade e dar empregos a mais refugiados, desde que tenha clientes que precisem dessas habilidades que eles trazem. “Estamos atrás desses clientes”, diz Laurent.
Home Agent: trabalho em casa amplia acesso
Em 2011, nove anos antes de a pandemia tornar o home office o regime de trabalho padrão de muitas empresas, a Home Agent foi criada com esse sistema e o objetivo de trazer para o setor de customer experience um profissional mais qualificado do que a média do mercado. “Temos um público mais maduro, com idade média de 35 anos, 90% de mulheres e 70% com curso superior. Pessoas qualificadas que não poderiam ou não gostariam de ficar fora de casa e assim eles conseguem conciliar o trabalho com a vida pessoal”, diz Fabio Boucinhas, cofundador e CEO da empresa. Em 2019, a companhia se tornou uma startup do Cubo e do InovaBra e nos últimos anos recebeu dois aportes de fundos de investimentos com impacto social: do X8, brasileiro, e do Capria, fundo americano que investe em mercados emergentes em empresas com base tecnológica.
“Usamos muita tecnologia na nossa operação, mas o social está intrínseco no nosso modelo”, diz Fabio. Dados da empresa mostram que 85% da equipe estava no mercado informal ou desempregada antes de entrar na Home Agent e, entre os que trabalhavam, o tempo médio de locomoção por dia era de quatro horas. Ou seja, gastavam 60 dias por ano apenas no transporte. Entre as mulheres, 40% dependiam do marido e agora têm renda própria.
Assim como visto com as mães que atuam na Amor Philia, o home office também fomenta a economia local, já que as pessoas tendem a consumir no próprio bairro em que moram. Um cálculo da Prefeitura de São Paulo, diz Fabio, mostra que cada emprego fora do Centro gera outros quatro novos empregos por causa da circulação local do dinheiro.
A flexibilidade de horários também permitiu à Home Agent recrutar pessoas com interesse em dividir a jornada diária em dois momentos, para atender casos específicos, como restaurantes, que têm picos de atendimento no almoço e no jantar. “As pessoas trabalham no horário do almoço, como estão em casa fazem um longo intervalo à tarde e podem cuidar da vida pessoal, e completam a jornada no jantar. Isso facilita para elas e evita a ociosidade no meio do dia, reduzindo nossos custos”, diz Fabio. “Aumenta o leque de pessoas interessadas em trabalhar nesse sistema e por isso conseguimos esse perfil de profissional mais qualificado”, diz ele.
Embora todo o recrutamento e a jornada sejam remotos, utilizando ferramentas de gestão que inclusive são disponibilizadas para clientes como um dos produtos da empresa, a Home Agent tem um escritório em São Paulo, na Vila Olímpia, onde realiza de forma presencial o treinamento, faz encontros de reciclagem e reuniões com clientes. “Apesar do trabalho remoto, a gente acredita no valor da interação pessoal”, diz o CEO.
Com 700 colaboradores, a empresa recebe mais de 20 mil candidatos por mês no site, e por isso consegue selecionar perfis específicos em termos de habilidades tanto técnicas quando emocionais e culturais. “Temos especialista em veículos de luxo, já tivemos especialistas em vinho, por três anos tivemos uma operação bilíngue português/inglês para um cliente, já tivemos cliente com atendimento em espanhol e estamos prestes a fechar com um cliente da Nova Zelândia”, conta Fabio.
A diversidade da equipe, segundo ele, aconteceu naturalmente, sem que fosse necessário determinar os recortes específicos no recrutamento. Mas o censo interno mostrou que a empresa tem na equipe 50% de pretos e pardos e 30% de LGBTQIA+, de 3% a 5% de pessoas trans e também um número de indígenas. “Não selecionamos perfil específico, selecionamos os melhores. Mas acredito que por meio do modelo de home office as pessoas conseguem exercer seu potencial profissional sem nenhum freio, conseguem crescer sem restrições. Quando mais diversa é a empresa, mais rica ela é culturalmente e em termos de resultados também”, diz Fabio.
Tahto: em prol das mulheres gestantes e 50+
Com 56% dos 10 mil colaboradores em 18 estados em home office, a Tahto, empresa de soluções em Customer Experience e BPO, tem 70% de participação feminina na equipe – bem acima da média do mercado, de 50%. Metade das equipes fica em Goiânia, sede da companhia, que recebeu até um prêmio da prefeitura da cidade por ser a empresa que mais contrata mães na cidade.
A empresa também contrata mulheres grávidas, prática pouco comum no mercado. “Não fazemos distinção, nem perguntamos sobre isso. Muitas vezes quando a mulher está grávida ela nem procura emprego por medo de não encontrar. Mas não apenas contratamos como fazemos o acompanhamento da gravidez”, conta o CEO, Luis Ricardo Ferreira.
A empresa trata igualmente mulheres gestantes ou não, inclusive na progressão da carreira. “Gestação e carreira podem conviver sem conflito. Nada impede a mulher ser promovida durante a gestação e garantimos a posição de volta quando ela retornar da licença”, diz Uliana Prado, diretora de Gente e Cultura da Tahto. Hoje 51% da liderança é formada por mulheres e, destas, 47% são mães. A empresa oferece ainda um programa voltado a gestantes e mães, o Tahto Materno, com acompanhamento médico e social e que atende cerca de 500 mulheres, o equivalente a 5% do total de colaboradores.
As oportunidades de crescimento na carreira também não param com a gravidez, e a empresa garante a volta para o mesmo cargo após a licença maternidade. “Hoje o mercado de um modo geral não está aberto para contratar ou promover uma grávida. Essa contratação faz com que essa profissional seja extremamente comprometida e a Tahto devolve esse comprometimento dando acesso à carreira”, diz Uliana.
A busca por perfis mais amplos também acabou atraindo um público com mais de 50 anos – alguns até com 65 anos – que estava fora do mercado de trabalho havia algum tempo, por falta de oportunidade. Cerca de 10% dos funcionários estão nessa faixa etária, um público que se adaptou muito ao home office. “É um perfil que às vezes tem mais dificuldade com o atendimento no digital, mas se adapta muito bem ao atendimento de voz. São mais atenciosos, têm mais paciência, uma escuta ativa”, diz Uliana.
Além da maior atenção com o cliente, o turnover é menor nessa faixa etária, e a empresa sente mais comprometimento com trabalho e facilidade de autogestão do tempo – essencial para o trabalho remoto – entre esses profissionais mais velhos. “A geração de 50 anos hoje dá um banho na de 20 em termos de comprometimento. Também são mais questionadores, o que é bom, porque nos ajuda a melhorar os processos”, diz a diretora de Gente e Cultura.
AeC: oportunidades para refugiados e mulheres em situação de vulnerabilidade social
A AeC, sediada em Belo Horizonte e com atuação em 11 cidades brasileiras, já capacitou mais de 2 mil refugiados no programa Caravana do Bem – Abraçando o Mundo, em parceria com o Instituto ADUS, que trabalha com reintegração de refugiados. Desses, 555 foram contratados pela própria AeC, empresa de relacionamento com cliente que está no mercado há mais de 30 anos. Os demais foram encaminhados para processos seletivos em outras empresas.
A origem desses refugiados é bem diversificada, assim como a língua de origem. Entre os principais estão Angola, Nigéria, Camarões, Palestina, Serra Leoa, Venezuela, Marrocos, Haiti e Peru.
Há operações em que falar o português é essencial. Em outras, a língua nativa pode ser uma vantagem. “Existem muitas operações em que essas pessoas de diferentes nacionalidades estão incluídas, cada uma com as suas particularidades. Há aquelas que necessitam do conhecimento do inglês para o atendimento ao cliente, idioma no qual muitos dos refugiados já estão habituados”, diz o Diretor de Pessoas da AeC, Alexandre Faria. Para outras operações, é necessário conhecer a língua portuguesa, que pode ser aprimorada ao longo da capacitação disponibilizada pela AeC e o Instituto ADUS. “Há um treinamento de sensibilização do corpo gestor da empresa, para que esse acolha os refugiados de maneira adequada, entendendo as diferenças culturais envolvidas nesse processo”, explica.
A AeC tem outros projetos de capacitação e encaminhamento para o mercado de trabalho, como a Caravana do Bem Por Elas, que atua com mulheres em situação de vulnerabilidade social. A empresa também atua para incluir pessoas com mais de 50 anos no mercado no Projeto Longevidade e, na outra ponta, leva empregos a cidades do interior do Nordeste e do Sudeste, sendo grande empregadora de jovens de 18 a 24 anos sem experiência profissional.
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