Neuroforesight e o desafio de projetar futuros possíveis

Monica Miglio Pedrosa
As discussões sobre futuro nas organizações costumam girar em torno de tendências, inovação e uso de tecnologias como a inteligência artificial. Mas, para a futurista Letícia Setembro, fundadora da Seek Futures, essa é uma abordagem incompleta, que ignora o aspecto humano e emocional das pessoas. Para ela, a forma como uma empresa enxerga e constrói o amanhã não depende apenas de dados e análises externas, mas de como cada pessoa lida com sua própria história, seus vieses inconscientes e sua percepção do presente, único tempo possível para construir futuros desejáveis.
Durante o RH Experience, Letícia apresentou o conceito de neuroforesight, campo emergente que une a capacidade de antecipar e planejar futuros (foresight) com a neurociência. A proposta é investigar não apenas quais tendências estão influenciando os negócios, mas também como nós, biologica e emocionalmente, reagimos a elas.
“Quando apresento o mesmo cenário de futuro a empresas do mesmo setor, de portes similares, uma se entusiasma com a novidade e a outra fica pessimista com a ideia. Isso não é sobre o dado externo, é sobre o dado interno das equipes”, explicou. Essa diferença revela que o modo como cada indivíduo processa o risco e está disposto à mudança varia de organização para organização. Esses padrões emocionais coletivos acabam moldando o que a empresa entende como possível.
Para contextualizar o conceito, a futurista citou a teoria da dupla herança, popularizada pelo antropólogo Joseph Henrich, segundo a qual a humanidade evolui a partir da combinação entre herança genética e herança cultural, formando uma inteligência coletiva transmitida de geração em geração. Esse processo de aprendizado baseia-se em um mecanismo inconsciente de cópia, quando imitamos quem já obteve sucesso com o objetivo de atingir o mesmo resultado.
Fragmentação dos indivíduos
Ao mesmo tempo, à medida que crescemos, influenciados por experiências externas, criamos “personas” para cada papel social: no trabalho, na família e em outros grupos. Para Letícia, essa fragmentação cobra um preço alto, pois nos afasta da própria essência e do que nos preenche verdadeiramente.
Empresas que têm dificuldade em lidar com o futuro podem não ter necessariamente um problema estratégico, mas uma questão de viés humano. Cada indivíduo carrega o que ela chama de “garras do passado”, memórias e padrões emocionais que, inconscientemente, limitam a capacidade de imaginar e construir novos caminhos. Essas amarras mantêm as pessoas presas a experiências repetidas, em uma espécie de looping, conceito inspirado em Carl Jung, em que se revive o trauma até que ele seja ressignificado.

Essas repetições não são apenas psicológicas, mas também biológicas e culturais. Citando o médico Gabor Maté, ela lembrou que 80% das doenças autoimunes atingem mulheres, reflexo de uma herança social que as ensina a reprimir emoções para preservar a harmonia ao redor e esse controle gera um ataque interno que pode se desenvolver como uma doença.
Pesquisas recentes também apontam para a transmissão intergeracional do estresse, como um estudo da Universidade de Turku, na Finlândia, que identificou traços de estresse no esperma masculino do pai, evidência de que podemos nascer com “marcas do passado”. Segundo Letícia, compreender essas dimensões é fundamental para quebrar os ciclos que impedem inovação e bem-estar nas organizações. “Enquanto não olharmos para o que nos prende, continuaremos criando futuros que se repetem.”
Repetição de padrões
Ao aprofundar o tema, Letícia explicou que a tendência de repetir padrões e se prender ao passado está diretamente ligada à maneira como o cérebro se estrutura e à forma como reagimos aos estímulos do ambiente. Na infância, segundo ela, vivemos em ondas cerebrais mais lentas (theta e alfa), que nos tornam “esponjas emocionais”, absorvendo tudo ao redor e registrando essas experiências como matrizes neurológicas.
Entre os 12 e os 25 anos, o cérebro passa por um processo de poda neural, fortalecendo os padrões mais repetidos e descartando o que não é usado. “Aos 25 anos, concluímos a formatação do córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento e pela visão de futuro”, explicou. É nesse momento que muitos cristalizam seus caminhos neurais, o que explica por que muitos adultos afirmam que “sempre fui assim”. Mas essa rigidez não é definitiva e a neuroplasticidade é o que nos permite soltar as garras do passado e reconfigurar quem somos.
Essa desconexão com o presente, disse Letícia, se agrava no ritmo acelerado da vida moderna. “Vivemos no modo beta, o tempo inteiro em alerta, respondendo estímulos, sem realmente estarmos aqui.” Para ela, a consequência é uma espécie de violência neuronal, conceito que combina as ideias de Gabor Maté e do filósofo Byung-Chul Han, autor de Sociedade do Cansaço.
O excesso de informações, telas e demandas simultâneas esgota o sistema nervoso e alimenta uma cultura de hiperprodutividade que conduz silenciosamente ao burnout. “Estamos sempre fazendo mil coisas ao mesmo tempo: comemos assistindo algo, trabalhamos olhando o celular, participamos de reuniões sem realmente estar nelas. É uma dissociação coletiva”, afirmou. Romper esse ciclo exige desacelerar e recuperar a presença, o único tempo em que, de fato, é possível transformar o futuro.
Para Letícia, compreender o futuro também passa por entender o espírito do tempo, o chamado zeitgeist. Cada era é moldada por ondas de transformação que misturam avanços tecnológicos, padrões culturais e novas formas de pensar. “Viemos de um modelo industrial de obediência, onde o indivíduo se retirava do protagonismo, para um modelo neoliberal, que colocou em cada um a responsabilidade de ser o próprio herói”, disse. O problema, segundo ela, é que essa lógica do “empreendedor de si” ignora os limites biológicos e emocionais do ser humano.
A influência do passado no futuro
Ela citou o neurocientista Antonio Damásio para afirmar que não existe uma “razão pura”. “Até quem acredita que é só razão está suprimindo sua emoção”, completou. Recordar memórias e imaginar futuros usa o mesmo mecanismo cerebral, o hipocampo. “Se você lida muito mal com suas memórias vai ter problemas com o planejamento futuro”, alertou.
A futurista também apontou que há um viés de pessimismo coletivo que contamina a maneira como imaginamos o amanhã. “Acreditamos que a nossa vida individual vai dar certo, mas que o mundo vai dar errado. Isso é viés, e é péssimo para a cocriação de futuros coletivos”, explicou. Para romper esse padrão, ela propõe cultivar uma positividade estratégica, capaz de ampliar o campo de visão e gerar inovação. “Quando estamos em emoções positivas, o corpo se abre para novas conexões. É isso que cria o novo”, afirmou, citando a psicologia positiva.
Para Letícia, o modo como percebemos o tempo diz muito sobre a forma como escolhemos viver. A sensação de que os dias passam cada vez mais rápido tem relação direta com a ausência de novidade e com a perda da nossa capacidade de estar presentes. “Quando você está preso à rotina da repetição, o tempo acelera”, afirmou.
Ela chamou atenção para um fenômeno contemporâneo que batizou de cronocentrismo, que hipervaloriza o momento presente como o mais catastrófico de todos. Essa percepção, segundo ela, é alimentada pela ansiedade coletiva e pelo excesso de estímulos. “Historicamente, já vivemos tempos muito mais complicados e sempre saímos deles com a força do coletivo e com inovações incrementais.”
Para finalizar, ela questionou o determinismo tecnológico, ou o tecnocentrismo, que nos faz acreditar que a tecnologia irá resolver tudo. “A IA carrega tudo o que aprendemos a fazer. Ela é um banco de dados do passado, mas ainda não tem a capacidade de criar o novo”. Para ela, o grande desafio está em sair do modo de reação e sobrevivência para entrar em um modo de crescimento e criação, substituindo o viés de negatividade por uma mentalidade de oportunidade. “No fim, é a consciência humana, e não a tecnologia, que determina o futuro que escolhemos construir.”

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