Futuro

Silvio Meira: até 2030, a função de 50% dos gerentes poderá ser resolvida pela IA

Sílvio Meira, cientista-chefe da TDS

Por Monica Miglio Pedrosa

Cientista, professor, empreendedor, ele foi um dos fundadores do Porto Digital, um dos principais parques tecnológicos urbanos instalado na área central do Recife, no qual trabalham hoje cerca de 20 mil pessoas em 360 empresas. Silvio Meira, hoje cientista-chefe da TDS, uma spin-off do CESAR (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), se dedica atualmente a estudar os efeitos de tecnologias como a inteligência artificial nos negócios e na vida das pessoas e das empresas.

Nessa entrevista concedida à [EXP] durante o Fórum CEO Brasil, evento realizado pelo Experience Club no Guarujá, no fim de setembro, ele afirma que a inteligência artificial irá substituir “profissionais criativos medianos e abaixo deles” e toda profissão que atua com um conhecimento que pode ser quantificado. Silvio Meira alerta também que as organizações que não usarem a IA nos processos de tomada de decisão serão substituídas pelas que usarem. Para o cientista, até 2030 é possível que a função de 50% dos gerentes seja resolvida pela tecnologia.

Silvio Meira falou também sobre a impossibilidade de se colocar em prática a redução da carga de trabalho com o avanço da tecnologia, sobre a falta de profissionais de TI no mercado, sobre o “delírio” de investir em chips cerebrais enquanto há problemas fundamentais da Humanidade a serem resolvidos e sobre a crise do modelo universitário brasileiro. “Está na hora de pensar estrategicamente o desafio nacional da educação, como fizemos com a agricultura (Embrapa) e a aviação (Embraer)”, afirma. Ele conta ainda como foi o processo de construção do Porto Digital, a partir de uma “mentira realizável” que contou a Jarbas Vasconcelos, então governador de Pernambuco.

Veja também a palestra de Silvio Meira no Fórum CEO Brasil:

[EXP] – Silvio, qual a sua opinião sobre as discussões a respeito da inteligência artificial?

[Silvio Meira] – A inteligência artificial está aí, de certa forma, desde 1950. Alan Turing (matemático britânico considerado o pai da ciência da computação e da inteligência artificial) escreveu um paper que estabelece a problemática que a IA deveria endereçar e que pode ser resumida em uma pergunta simples: será que algum dia vou conseguir escrever um código para o computador executar que seja equivalente à inteligência humana? Essa tem sido a busca da comunidade de computação e também da psicologia, neurociências, física e biologia. O Chat GPT existe em laboratório desde 2018. Em 2022 com a abertura ao público, ele alcançou 100 milhões de usuários, o crescimento mais rápido de toda a história do software no mundo. A pergunta é: por que, sabendo do potencial de impacto desde 2018, não fizemos nada para propor uma linha de defesa desse sistema?

Há muita polêmica em relação ao impacto da IA no mercado de trabalho. Qual é a sua visão a respeito?

Em países emergentes como o Brasil, essa tecnologia vai afetar de uma forma completamente diferente do que estamos pensando. Chat GPT ou robótica móvel não vão substituir o varredor de rua, o faxineiro, o garçom. Estamos falando de sistemas que vão substituir um médico que analisa imagens, um advogado que defende processos na justiça, uma certa classe de engenheiros que repetem projetos, alguns profissionais criativos medianos e os abaixo deles, jornalistas que escrevem um texto apenas baseado em dados, por exemplo, sobre o mercado de capitais. Onde há dados codificados a IA pode imaginar comportamentos equivalentes, fazer descrições desses comportamentos e até previsões melhor do que um ser humano. E onde está essa mediana dos profissionais que serão atingidos? Ela é uma mediana ou 75% da pirâmide vão virar commodity?

Quem mais será impactado pela IA?

Há uma ameaça real e concreta a um número muito grande de profissionais que fizeram universidade, que têm um conhecimento que pode ser quantificado. Que aprenderam leis, regras, fundações, teorias e suas aplicações na realidade. A IA vai atingir uma gama muito grande de pessoas muito bem qualificadas. Por outro lado, o varredor de rua no Brasil é infelizmente tão mal remunerado que não há uma aplicação imediata de IA em uma plataforma móvel de limpeza de ruas. É plenamente possível que daqui até o fim dessa década a função de 50% dos gerentes esteja resolvida. É possível que 70% dos processos de tomada de decisão nos negócios sejam habilitados por inteligências artificiais ou de fato substituindo a função humana na decisão.

Como as empresas devem lidar com esse impacto?

As organizações que não usarem estratégica e intensivamente inteligência artificial, pelo menos nos seus processos de tomada de decisão, de aplicação, e talvez em gestão de processos e projetos, serão substituídas pelas organizações que as usarem. Não é que a IA vá acabar com tudo, é que um novo tipo de profissional está surgindo para um novo tipo de organização. Haverá um squad de soluções de problemas que é habilitado por inteligência artificial, com uma perspectiva de aumento de performance de pelo menos duas vezes, em alguns casos de quatro a cinco vezes. Na TDS fizemos um experimento com o nosso time de conteúdo para aumentar em 100% a produtividade deles em duas semanas.

Qual foi o resultado?

É importante dizer que não demitimos ninguém. Estamos simplesmente habilitando o time de conteúdo para produzir muitas vezes mais do que produzia até agora, com muito mais qualidade e com mais impacto. Apesar de escrever ser uma tarefa cognitiva e humana, ela pode ser codificada com inteligência artificial. Meu time pode usar isso e ficar com o pensar, o decidir as bases para o texto que será escrito sem ter de necessariamente escrever o texto.

Se vamos ampliar a produtividade, será que em algum momento vamos conseguir viver o ócio criativo pregado por Domenico de Masi?

Keynes [o economista John Maynard Keynes] previu em 1930 que em 2030 nós trabalharíamos apenas 15 horas por semana e que isso seria o suficiente para dar conta de todas nossas necessidades. Isso não irá acontecer. Primeiro porque as necessidades mudaram. Na época de Keynes você não tinha o desejo induzido pelas redes sociais de passar suas férias nas Maldivas. Por outro lado, o espectro de problemas que temos que resolver hoje nos negócios é infinitamente maior do que era em 1930. Edgar Morin diz que o maior desafio contemporâneo da espécie humana é transformar um bando de seres cognitivos numa verdadeira humanidade. Enquanto a gente não tiver chegado nesse ponto, a gente não resolveu problema nenhum.

Sílvio Meira, cientista-chefe da TDS

A tecnologia pode nos ajudar nisso?

Veja bem, hoje eu preciso usar óculos e muitas pessoas também. Temos um bug, um problema no código genético que nos levou a ter miopia. Nosso software precisa ser editado. Qual é a nossa capacidade hoje de ter uma solução em que você entra em uma clínica, tem o seu código reprogramado e resolve sua miopia? Nenhuma. Em 2000 começamos a avançar com o projeto Genoma Humano, mas ainda vai levar pelo menos 30 a 40 anos para chegar a uma solução como essa. E esse é o nível embrionário. Depois vamos ter de fazer coisas mais complexas para resolver os problemas em outros estágios da natureza. Isso vai demandar tanto trabalho que nenhum tempo que economizemos agora com a tecnologia vai poder ser aproveitado. Esse tempo será consumido pela construção do futuro do trabalho.

Você falou em reprogramação de código genético. Como vê iniciativas como a de Elon Musk e o chip cerebral da Neurolink?

Todo mundo tem o direito de delirar do jeito que quiser. Eu sofri cinco derrames na retina e adoraria que houvesse um dispositivo figital [combinação de físico com digital] conectado em rede que substituísse minha retina. Mas há problemas elementares para chegar nessa solução. Primeiro, é preciso ter o mesmo número de sensores eletrônicos que eu tenho hoje na retina e eles devem ser colocados no mesmo espaço da minha retina. Depois, vem o problema de conectar esse número imenso de sensores ao meu nervo óptico. E aí, de onde vem a energia para fazer isso funcionar? Esse circuito, que poderia ser biofísico, vai ser gerado pelo meu corpo e entregue nesse dispositivo? Quanto dessa energia vai ser convertida em calor? Nenhum dispositivo hoje converte 100% de energia em processos efetivos do dispositivo. Eu vou precisar colocar um micro ventilador ou um micro ar condicionado para reduzir esse calor?

Então hoje você vê esse uso como algo da ficção científica?

Respondendo a sua pergunta anterior: temos tantos desafios para a humanidade resolver em um nível muito mais básico, como a universalização da saúde fundamental, cobertura vacinal ampla… que essas aventuras figitais pertencem a um departamento de um futuro que talvez nunca se realize, de ficção científica. Muito antes da gente precisar de um “Neurolink genérico” que pode ser usado pela população, precisamos resolver tantos outros problemas fundamentais, como a disponibilidade do mínimo de proteína recomendável para todos os seres humanos, que talvez não valha investir nisso. Esse tipo de investimento é uma espécie de desarranjo global do capitalismo, que cria gente tão poderosa, com tantos recursos e dispõe deles das maneiras mais distópicas possíveis. Se tivéssemos uma humanidade um pouquinho mais equilibrada, que escolhesse os problemas que precisam ser resolvidos, poderíamos ter implantes digitais muito mais rapidamente.

Falando em futurismo, o que você acha do Metaverso?

O Metaverso proposto por Zuckerberg e outros é um mundo virtual que ainda não tem condições de existir. Para que uma simulação realística do espaço virtual na qual eu possa interagir seja possível e eu não perceba uma diferença significativa entre os dois, o tempo de resposta entre meu avatar e eu teria de ser abaixo de 3 milissegundos. O que já é real? Usar o Metaverso por exemplo como um gêmeo digital na indústria, em que você dá manutenção em uma turbina de avião de alta complexidade que não precisa ser desmontada, é algo tangível. Há potencial na medicina, na supervisão de ambientes, na indústria… À medida que conectarmos mais dispositivos à Internet das Coisas, que produzem dados para simulações neste ambiente, podemos usar o Metaverso para ser o correspondente da realidade física.

Você e Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, têm defendido a necessidade de repensar as universidades e a educação, de uma forma mais ampla. Qual é a visão crítica de vocês sobre o tema?

Uma boa interpretação disso vem do fato de que na maioria das formações superiores, a vasta maioria dos alunos não vai para o mercado trabalhar no que aprendeu. Tem alguma coisa errada aí. Isso já é uma razão para criar uma crise filosófica na universidade, porque não existe uma universidade separada da sociedade e da economia. Esse descolamento e, pior, o desalento da maioria dos estudantes universitários, tem levado o Brasil a perder candidatos a engenheiro e a reduzir os cursos de engenharia desde 2014. O mesmo acontece nas carreiras de Ciências Exatas.

Olhando de forma mais ampla, há um descolamento entre a universidade, o ensino médio e o ensino fundamental. Este último está em pleno século 19. Temos que garantir que quem sai do ensino médio tenha capacidade de exercer uma profissão como resultado do seu aprendizado. O resultado não pode ser saber ler e escrever para tirar uma carta de motorista e entregar pizza. Se nossa educação continuar formando entregadores de pizza, no futuro essa função será sim substituída por um robô, até porque esse não é um trabalho verdadeiramente humano. Os trabalhos humanos são os que precisam das nossas funções cognitivas superiores. É para isso que deveríamos redesenhar o ensino no país em todos os níveis.

Isso precisa ser feito até pensando na economia global e na competitividade do Brasil no mercado.

Certas horas a gente tem a ilusão de que o Brasil é grande, mas não é. Quer ver um exemplo no mercado de software, que é onde atuo? Dizem que o Brasil é um mercado gigantesco de software, mas ele representa apenas 1,5% do mercado global. Se alguém tiver 20% do mercado de software no Brasil terá 0,3% do mercado global. Ou seja, se algum gigante global que compete com meu negócio vier para o Brasil ele acaba comigo no outro dia. É preciso pensar estrategicamente os grandes desafios nacionais.

Como esses desafios podem ser endereçados?

Fizemos isso no desafio da mobilidade da cobertura aérea para conectar o país e criar um espectro de segurança nacional nos ares. Criamos uma escola de engenharia, um centro de pesquisa multidisciplinar em várias áreas ao redor dessa escola, criamos uma empresa e toda uma rede de valor ao redor dela. Essa empresa começou de forma estatal e em 2000 chegou à Bolsa de Valores. Ela domina o mercado global de aviões de médio porte e parte do mercado de jatos executivos. O nome dessa empresa é Embraer, o da escola é ITA e do centro de pesquisas é CTA (Centro Técnico Aerospacial).

Da mesma forma, fizemos a Embrapa, que desenhou, como produtor de grãos, o cerrado, um lugar que até a década de 1970 não produzia nada. Enfrentamos o desafio da sustentabilidade alimentar e hoje produzimos para todo o mundo. Nossa deficiência interna de comida não é um problema de produção, mas uma imensa falha na distribuição do alimento, uma desigualdade terrível, talvez única entre os países do mundo que tem o potencial do Brasil de alimentar os próprios habitantes. Resumindo, precisamos fazer o mesmo movimento para a educação. A pergunta que precisa ser feita é: para que vamos melhorar o sistema de ensino?

O Porto Digital foi uma iniciativa que promoveu um impacto econômico e social gigantesco em Recife. Como foi sua concepção?

Recife teve alguns dos primeiros computadores do Nordeste do Brasil, em uma época que não havia redes e que o transporte de dados para serem processados nos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro era caro. Na década de 1960 surgiram os primeiros centros de computação na cidade. Esse ambiente de empresas estrangeiras que faziam o processamento de informação em Recife criou as bases de capital humano para que empresas públicas e privadas de grande porte trouxessem seus centros de computação naquela década. A Proceje, que é uma empresa do Porto Digital, foi fundada em 1972.

Esse movimento levou à fundação de um centro de computação na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), em 1974, e a oferta de graduação e pós-graduação pari passo com lugares como Campinas, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Eu voltei para Recife em 1985, após concluir meu doutorado [na Universidade de Kent] e começamos a pensar em como construir uma universidade competitiva, o que demandava negócios sofisticados ao redor da universidade, que precisassem das competências que a gente queria formar. Assim surgiu o CESAR (Centro de Estudos em Sistemas Avançados do Recife), em 1996. Entendemos que precisávamos fazer algo maior, um cluster diverso, de empresas de todos os dias. E contamos uma mentira realizável ao então governador Jarbas Vasconcelos.

O que foi essa mentira realizável?
A mentira é o seguinte. Prometemos para o governador que em 2050 haveria 50 mil pessoas trabalhando no Porto Digital. Não só um projeto de criar trabalho de qualidade e de formar gente. Hoje Recife é a cidade que mais forma gente per capita no Brasil. Cinco das 10 maiores empresas do Porto Digital foram criadas em Recife a partir das universidades locais. E iniciamos um processo de recuperar o centro da cidade. Começamos a recuperar os prédios históricos e trabalhar lá. Hoje somos 20 mil pessoas, com quase R$ 5 bilhões de faturamento (2022) e 360 empresas no Porto Digital. Não estamos na metade do tempo prometido ao governador e com certeza cumpriremos a meta.

O que está faltando para construirmos outros “Portos Digitais” no país?
Eu acho que na época o governador sabia que estávamos mentindo. Mas ele apostou que iríamos realizar e é assim que você constrói essas coisas. Você cria uma mentira realizável e faz com que ao redor dessa mentira se junte a energia criativa coletiva de um grupo de cidadãos, independentes do estado e do governo, determinados a fazer uma política pública da coletividade dar certo. Aí é trabalhar algumas décadas e realizar.

E essa energia criativa coletiva é essencialmente humana, nada de IA.

É só gente, não tem inteligência artificial. Todos os dias do ano, em todas as épocas, os cidadãos associados ao Porto Digital, que fazem parte do ecossistema que colabora para que ele exista e evolua, acordam pensando: o que é que eu vou fazer hoje pela coletividade.

Existe um gap gigantesco de formação de profissionais em tecnologia no Brasil e no mundo. Como é que conseguimos encaminhar essa questão, que é complexa?

Primeiro, é preciso atrair mais pessoas para as carreiras de tecnologia. Estamos nesse esforço no Porto Digital há 23 anos. Criamos esse imaginário no Recife. Dos cinco cursos mais demandados da Grande Recife, três são na área de informática. Isso aconteceu porque começamos a demonstrar com provas reais que era possível ter uma carreira, empreender um negócio, ter crescimento profissional de longo prazo se formando em tecnologia. Temos escola pública de ensino médio dentro do Porto Digital que forma coders em nível júnior. Todos os dias recebemos uma visita de escola no Porto. Hoje somos a terceira maior economia do Recife, só abaixo de saúde e construção civil, e crescemos a uma taxa de 20%. Saíamos do zero para ser o terceiro maior em 23 anos.

A segunda parte é criar formações que conectem as pessoas que estão aprendendo com o mercado que demanda o resultado prático desse aprendizado. O Embarque Digital, feito em parceria com a prefeitura do Recife, é um projeto de formação superior de 2,5 anos, onde todo semestre uma das cinco disciplinas é feita diretamente em empresas do Porto Digital. Os estudantes aplicam em uma demanda prática e objetiva da empresa o que aprendem na formação. Uma parte significativa das pessoas é contratada pela empresa onde fez o projeto. Não estamos só formando pessoas. Estamos criando emprego.

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