Mercado

Tarifaço começa a valer hoje e pressiona empresas a rever margens e reestruturar supply chain

Anderson Dutra, Sócio da KPMG Brasil

Monica Miglio Pedrosa

Começa hoje a sobretaxa de 50% sobre produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos, com uma lista de exceção de cerca de 700 itens, que incluem suco e polpa de laranja, combustíveis e aeronaves civis, mas deixam de fora o café, carnes e pescado. O impacto para a economia brasileira promete ser significativo, pressionando ajustes de margens e cortes de custos nas empresas, o que leva a uma tendência de aumento da inflação e queda no crescimento econômico do país.

A análise é de Anderson Dutra, Sócio da KPMG Brasil e Head of Consulting para o Brasil e América do Sul: “O olhar das empresas está voltado para a estrutura de custos e a readequação de fornecedores. Infelizmente, isso deve gerar desemprego nos próximos meses.” Segundo ele, o agronegócio é um dos setores mais pressionados, tanto pelo efeito das tarifas, quanto pela alta dependência de insumos importados, como fertilizantes. Bens de consumo ligados ao minério, como celulares e produtos de alta tecnologia, também devem ficar mais caros.

Dutra avalia que o tarifaço também força o Brasil a redirecionar sua estratégia internacional para países como China, Índia e Sudeste Asiático e não descarta o “poder negociador” do presidente Lula para articular outras flexibilizações no pacote de exceções à sobretaxa e na consolidação de acordos comerciais com outros mercados para viabilizar rotas alternativas. Confira a seguir a análise completa do especialista.

Impacto nas empresas

“Os dois principais impactos são na margem e na reformulação da cadeia de suprimentos. Uma série de empresas já trabalhou um corte de custos agressivo para reduzir um pouco sua margem, sem que isso traga grandes impactos no preço final ao cliente. As empresas estão ainda revendo suas cadeias de suprimentos para readequá-las ao novo cenário.”

“Em alguns mercados, isso gera impactos também nos fornecedores da cadeia. No agronegócio, existe um impacto adicional, oriundo da importação de insumos utilizados para a produção de determinados produtos. Produtores de café, por exemplo, sofrem impacto da sobretaxa dos EUA e também do custo do fertilizante, que é importado. O olhar das empresas está voltado para a estrutura de custos e a readequação de fornecedores. E, infelizmente, isso vai gerar desemprego nos próximos meses.”

Inflação e bens de consumo mais caros

Commodities de uma maneira geral têm um impacto grande na inflação. E a tendência é a de desacelerar o crescimento do país. Bens de consumo ligados ao minério, como celulares e produtos de alta tecnologia, de alto valor agregado, vão ficar bem mais caros. Hoje esses bens são produzidos na China, mas passarão a ser fabricados nos Estados Unidos, onde o custo da mão de obra é mais alto. A esse aumento se soma ainda o efeito do reajuste nas tarifas de produtos importados dos EUA.”

Flexibilização da sobretaxa

“Independentemente de ideologia ou posicionamento político, acredito que o presidente Lula seja um bom articulador e negociador. Confio que ele irá conseguir renegociar algumas rotas e flexibilizar itens da lista de produtos sobretaxados. Além disso, poderá firmar acordos comerciais com outros mercados para viabilizar rotas alternativas.”

Estratégia de internalização da produção

“Gosto de fazer analogias com experiências que já vivemos. Há 20 anos, quando descobrimos o pré-sal, criamos uma política de conteúdo local por motivos muito semelhantes aos de agora. Para explorar o pré-sal, teríamos de investir em uma gama de equipamentos novos, que até então não eram utilizados nas produções offshore. Havia necessidade de alta tecnologia e de equipamentos, e isso nos deixaria dependentes da importação destes produtos, com custos mais altos. Naquela época, o Brasil optou por criar a política de conteúdo local e foi bastante criticado por isso.”

“Hoje, quando olho pelo retrovisor, vemos que a capacidade instalada para essa indústria é incrível. Nosso custo atual de produção de petróleo no pré-sal é equiparável ao da Arábia Saudita. Ele se aproxima disso porque conseguimos instalar a indústria aqui. É um movimento semelhante ao que os Estados Unidos estão fazendo agora, ao reindustrializar o país, o que será benéfico para eles no longo prazo.”

Investimentos nos EUA e valorização do dólar

“Quando os EUA adotam um modelo de reindustrialização, os investidores tendem a voltar o olhar para dentro do país, diante da necessidade de reconstruir uma capacidade de produção que hoje está, de certa forma, sucateada. Com a atração de investimentos, a tendência é de valorização do dólar e desvalorização do real, o que levará a um câmbio desvantajoso para o Brasil.”

Mercados que ganham nesse cenário

“A Ásia como um todo, especialmente a Índia e a China, país que já está olhando para o Sudeste Asiático em busca de alternativas. Acredito que esse também deveria ser o caminho do Brasil. Esses países têm condições de receber parte da demanda reprimida, não de 100% da demanda dos Estados Unidos, claro, porque o poder de consumos deles é incrível. São mais de 340 milhões de habitantes e, para dar um exemplo, 60% do café consumido pelos americanos vem do Brasil.”

Competitividade no agro

“Para o mercado agropecuário brasileiro, exportar para a Ásia é mais complicado, especialmente quando se trata dos pequenos produtores. Além disso, o Brasil compete com Argentina e Uruguai, que também estão buscando rotas alternativas na Ásia e estão mais competitivos que o Brasil hoje. Como esses dois países continuam exportando para os Estados Unidos e não foram sobretaxados, o custo de produção deles se torna melhor em relação ao brasileiro. Uma alternativa para o agro brasileiro seria buscar alianças ou joint ventures comerciais com a Argentina, utilizando o país para escoar a produção. O que pode ser uma boa oportunidade para o fortalecimento do Mercosul.”

“Por outro lado, 60% dos fertilizantes usados no agronegócio vêm da Rússia, outros 20% da Ucrânia e de países dessa região, enquanto internamente o Brasil produz apenas 20% do que consome. Isso é um absurdo. Já tivemos esse alerta durante a pandemia e com a guerra entre Rússia e Ucrânia. Precisamos resolver essa dependência internacional.”

Estratégia de mitigação

“Olhando pelo retrovisor, gosto de me basear em estratégias que já deram certo, como aconteceu na indústria do petróleo, onde o Brasil tem importantes vantagens competitivas. A indústria do agronegócio é outra na qual temos uma vantagem competitiva incrível. Ao incentivar esse setor para fortalecer o Brasil, mesmo com os efeitos da tarifa, ainda será possível escoar a produção em volumes que compensem a margem perdida. É fundamental proteger e blindar essa indústria no país, ao mesmo tempo em que, gradualmente, firmamos novos acordos comerciais. No caso do petróleo, diversos incentivos fiscais do governo foram decisivos no passado — e o mesmo pode acontecer agora com o agro.”

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