Gestão

“Temos que renegociar nossas condições de vida no trabalho”, diz especialista em neurociência

Denize Bacoccina

O modo como tomamos decisões é conduzido pelo nosso cérebro. Mas qual parte do nosso cérebro queremos acionar? A parte que trata do controle, planejamento e previsibilidade ou a que lida com as emoções? Luciana Lima, professora do Insper, é psicóloga, mestre e doutora em Administração e usa a neurociência como ferramenta para melhorar a liderança. Luciana é ainda autora de dois livros – HR Business Partner e Estratégia de Pessoas nos BRICS – e atua como consultora de empresas.

Nesta entrevista à [EXP], ela fala sobre a dificuldade de concentração que vivemos nos dias atuais, com múltiplos estímulos disputando a nossa atenção. “A gente acha que consegue ser multitarefas, mas isso é uma grande falácia. Não somos multitarefas”, afirmou. “Para você tomar decisão, você precisa focar sua atenção para dentro, se mobilizar para analisar alguma coisa”, alerta.

Luciana também fala sobre as mudanças geracionais e a necessidade de repensar os limites do ambiente profissional para lidar com o grande número de problemas de saúde mental. “Temos que renegociar as nossas condições de vida dentro do ambiente profissional”, afirma.

[EXP] Luciana, você falou que a área pré-frontal do nosso cérebro cuida de três coisas: controle, planejamento e previsibilidade. Como isso funciona na prática?

Luciana Lima – O nosso cérebro é um órgão absolutamente integrado. Cada parte precisa da outra para funcionar dentro dos padrões típicos que a gente espera. A área pré-frontal é a última área a se desenvolver. Em indivíduos com 20, 20 e poucos anos, por exemplo, esta área não está plenamente formada. Então quando a gente fala que os jovens são intolerantes, impacientes, imprevisíveis, é porque esta área é responsável por planejamento, controle e previsibilidade.

E ela se desenvolve em que idade?

Ela pode continuar se desenvolvendo até aproximadamente uns 35 anos. Na média, entre 20 e 25 anos. Espera-se de indivíduos mais seniores um comportamento mais controlado, mais planejado, mais adaptado às demandas do nosso dia a dia. A área pré-frontal é responsável pelo controle das emoções. Por isso a impulsividade de um jovem de 20 anos.

E como esses comportamentos estão sendo afetados pelo excesso de informações que vivemos hoje?

A gente fala que não tem limite para absorver informações, mas temos um limite atencional. Eu não consigo dar atenção a todos os estímulos que estou recebendo no meu dia a dia. Isso é humanamente impossível. A gente acha que consegue ser multitarefas, mas isso é uma grande falácia. Não somos multitarefas.

A gente faz uma mudança, um shift atencional. Eu estou olhando pra cá, aí eu olho pra lá, aí rapidamente eu foco uma atenção aqui, aí eu olho pra cima. Ou seja, estou sempre alocando a minha atenção. O grande problema é que quando você tem muitos estímulos, fica alternando entre uma coisa e outra e não absorve nada.

E o processo de aprendizagem e de mudança comportamental depende de quanta atenção você consegue alocar para os estímulos de fora e para os estímulos de dentro. Se eu estou no Instagram, estou no WhatsApp, toca o meu telefone, eu preciso fazer uma opção, dizer não a um conjunto de estímulos para focar em alguma coisa. Senão, no final do dia, você vai ter aquela sensação de que você fez muito, mas o resultado foi muito pequeno.

E imagino que isso vale não só para a aprendizagem, mas também para a tomada de decisão.

Para você tomar decisão, você precisa focar sua atenção para dentro, se mobilizar para analisar alguma coisa. O processo decisório é extremamente complexo. Por mais que a gente diga que somos seres absolutamente racionais, no fundo nós somos indivíduos constituídos 100% por vieses. O viés é a tua história de vida. Parte você consegue deixar de fora, parte não vai conseguir. E a atenção entra na sua capacidade de selecionar o que você mantém fora e o que você mantém focado. A capacidade de selecionar o que é importante, o que é prioridade. Parece que tudo é importante e tudo fica meio nivelado.

Como a gente consegue distinguir o que é e o que não é importante?

Tudo isso envolve um processo químico muito grande. A barra de rolagem das redes sociais, a sensação de que não pode parar de rolar, é um processo que é o mesmo processo de adição química. É o mesmo circuito neuronal envolvido, inclusive o mesmo conjunto de neurotransmissores.

Quando a gente fala da próxima geração que vai entrar no ambiente de trabalho, isso me preocupa muito. O desenvolvimento cognitivo depende da sua capacidade de escrita manual. As crianças estão escrevendo ou elas estão só digitando no computador? Elas estão lendo livros físicos?

Faz diferença ler livro físico?

Livro físico faz diferença. Escrita manual faz diferença. O brincar, com uma brincadeira que não seja só o jogo eletrônico, faz diferença. Tudo isso faz diferença. Os próximos anos me preocupam, em termos de processo cognitivo, por conta do que estamos dando de formação às nossas crianças.

Já temos no mercado de trabalho a geração Z, que já é nativa digital. Já se vê mudanças?

Temos que separar algumas coisas nessa discussão. Tem um padrão de comportamento que não mudou e não vai mudar do jovem de hoje para o jovem que eu era, para o jovem que meus pais eram. Evolutivamente, o nosso cérebro não teve grandes mudanças. Um jovem vai ser impulsivo, vai ter os seus destemperos, vai ser impaciente, teimoso, não vai ter noção de perigo, não vai considerar um monte de coisas na hora de decidir. Vai achar que a opinião do outro não faz muito sentido, principalmente se o outro for mais velho. Isso tudo tem a ver com o desenvolvimento cerebral, que não mudou.

O que mudou foi o conteúdo. Eu, quando tinha 20 anos, ouvia rock’n’roll. O meu filho com 20 anos não ouve rock’n’roll, ouve outros tipos de música. O conteúdo muda. E não tem problema nenhum ele ter nascido nesse mundo digital. O problema é a gente limitar ou não estimular outro acesso que não seja esse. Isso tem impactos no desenvolvimento. Já vemos casos de internação para detox de celular em jovens.

E esse não escrever à mão, não ler em papel, já provocou mudanças no modo de agir?

Já. Você pega universitários hoje que ficam impacientes quando precisam ler um texto no papel. A velocidade é outra, a posição de cabeça é outra, o foco do olhar é outro. No celular você lê de uma forma normalmente muito mais rápida. Isso muda o comportamento. Mesmo que a pessoa depois não use tanto a escrita à mão, ela tem que ser desenvolvida.

Você também falou na palestra sobre as redes neurais. Como usar as redes neurais a favor do desempenho?

Tem duas redes mais importantes nesse sentido. A rede tarefa vai depender totalmente da tua capacidade de manter a atenção, de manter o foco, de dizer não pro mundo e dizer não pra você. Você está focado, imerso naquela atividade. A rede default é a rede de relaxar, de desconectar, deixar o pensamento fluir. De se reconectar com você sem cobrar necessariamente um resultado.

Como saber o momento certo de ativar qual rede?

Você só vai saber o momento se você estiver prestando atenção em você mesmo, porque o teu corpo vai dar sinais. A ansiedade que você está sentindo é natural ou é porque você não está conseguindo controlar? Isso tem a ver com os limites que você coloca para o mundo e para você.

A gente vê muito discurso de que o jovem de hoje não quer ficar fazendo hora extra, quer equilíbrio na vida profissional, pessoal. Aí eu pergunto: eles estão errados? Porque se você só opera no módulo tarefa, em algum momento você vai surtar. Vai ter a sua amígdala sequestrada, vai perder o controle e pode entrar num processo de adoecimento. Então, na verdade, é o caso de se pensar tudo.

Explica o que é o sequestro da amígdala e por que ela é tão importante no sistema emocional?

Temos áreas funcionais. A área funcional relacionada às emoções é o sistema límbico. A amígdala é uma partezinha do sistema límbico. Ela é o grande classificador de valência. Quando alguma coisa acontece, ela olha e fala: isso é bom, isso é ruim, isso é muito ruim, isso é bom. Ela classifica. E a amígdala é muito pessimista. Ela quer reagir. A tendência de classificar alguma coisa como ruim é muito maior do que classificar como boa.

É por isso que no feedback com os nossos profissionais a gente diz que é precisa criar memória [registros]. Se você não tiver a memória do que a pessoa está fazendo, a tendência no feedback é só lembrar das coisas ruins. Isso tem um motivo, é pra mapear as ameaças. Só que o nosso profissional não pode ser uma ameaça. Se você não se dá conta disso e não faz o histórico, você corre um alto risco, inclusive, de ser injusto. A amígdala vai registrando e chega uma hora que explode. Ela pega o pré-frontal, que é controle, planejamento, predição, e derruba, bloqueia. Por isso que a gente fala de sequestro. Você é completamente inundado por neurotransmissores conectados ao cortisol, conectados a processos de estresse, e você perde a noção.

Isso é o burnout?

O burnout é uma consequência disso, quando acontece numa frequência muito grande. Isso pode ser um momento, mas se vira o seu dia a dia, se torna uma doença.

E o antídoto são esses momentos de desconexão ou de conexão consigo mesmo?

Eu acho que esse é um bom caminho. Eu vejo muitas organizações implementando programas de saúde mental. Temos que acabar com os tabus com relação a isso. Se a gente olhar em volta para identificar quem se sente ansioso, está todo mundo assim. E se todos estão assim não pode ser um problema falar sobre isso. Temos que falar.  Mas só falar também não adianta. Temos que lidar com isso.

Temos que nos repensar como família, como profissionais, repensar os nossos limites. Os processos, as práticas de gestão de pessoas precisam começar a ser renegociadas internamente e no topo da pirâmide. Os CEOs também estão dentro desse processo. Temos que renegociar as nossas condições de vida dentro do ambiente profissional.

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