A caixa-preta da governança
Autora: Sandra Guerra
Ideias centrais:
1 – O conselho de administração pode ser definido como o sustentáculo da governança corporativa e o nexo crítico no qual os destinos da companhia são decididos. Ele também é visto como o órgão-chave de tomada de decisão da corporação em nome dos acionistas e repositório do máximo poder da empresa.
2 – Um homem branco com idade entre 50 e 60 e tantos anos. Esse é ainda o perfil de conselheiro que prevalece ao redor do mundo, a despeito dos ventos que começam a arejar as salas de conselho. Um estudo comparativo, realizado anualmente pela Spencer Stuart entre conselhos de 17 países, indica que, em 2019, os homens seguem dominando os CAs, com presença igual ou superior a 70% em dez países.
3 – Para assegurar a própria sobrevivência em curto e longo prazos, as empresas foram obrigadas a lançar um novo olhar para as relações em toda a sua cadeia de valor com foco particular em clientes e colaboradores, sob a perspectiva da sustentabilidade.
4 – O papel do PCA (Presidente do Conselho de Administração) é de facilitador do debate entre os membros.
5 – Kahneman, Prêmio Nobel De Economia de 2002, divide o processo cognitivo em Sistema 1 e Sistema 2. Entre as capacidades incluídas no Sistema 1 estão as inatas e também aquelas aprendidas, que se tornam rápidas e automáticas. Já as do Sistema 2 são discricionárias e exigem atenção integral.
6 – Como se subestima o nível de irracionalidade que pode tomar conta do raciocínio humano – mesmo que pareça baseado em premissas sólidas – está aberto o flanco para interferências indesejadas e inconsistentes na decisão.
7 – Os conselheiros precisam buscar uma visão direta das preocupações e expectativas dos stakeholders e, para conseguir isso, têm que sair da sala de reuniões para visitar operações, clientes e comunidades com as quais a companhia opera.
Sobre a autora:
Sandra Guerra tem atuado como conselheira e presidente de conselhos de administração desde 1995. Foi uma das fundadoras do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), cujo conselho presidiu de 2012 a 2016. Integrou o conselho do Global Reporting Initiative (GRI) de 2017 a 2019. Sandra é sócia-diretora da Better Governance, consultoria em governança corporativa com foco em conselhos de administração.
Introdução:
Além de revisar a mais recente literatura brasileira e internacional sobre a abordagem comportamental e entrevistar experts mundiais em governança, como sir Adrian Cadbury, Bengt Hallqvist, Ira Millstein, Mats Isaksson, Mervey King, Mike Lubano, Robert Monks e Stephen Davis, dediquei-me a aprofundar minha compreensão das práticas de GC nas empresas, tomando por base a realização de três pesquisas: a primeira delas com 102 conselheiros das mais relevantes organizações e dos mais diversos setores da economia brasileira, aplicada de maio de 2015 a janeiro de 2016.
A seguir, entre junho e outubro de 2018, o professor doutor Lucas Barros, Rafael Liza Santos e eu realizamos outro estudo do qual participaram 340 conselheiros de 40 países. Dessa vez, olhamos dentro da “caixa-preta” para investigar alguns dos principais desafios enfrentados pelos CAs em sua busca por um processo decisório eficaz. Também exploramos a perspectiva exclusiva dos próprios conselheiros sobre a prevalência dos vieses de grupo e outros fatores potencialmente capazes de prejudicar ou aprimorar o desempenho dos conselhos. E, finalmente, entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, a Better Governance coletou e analisou as respostas de 103 conselheiros brasileiros atuantes em 238 conselhos para verificar como é a dedicação do tempo deles – dentro e fora das salas de reunião.
PARTE I – A caixa-preta
Capítulo 1: A máquina de tomar decisões
De acordo com alguns dos principais estudiosos da área, o conselho de administração pode ser definido das seguintes formas:
- É o sustentáculo da governança corporativa e o nexo critico no qual os destinos da companhia são decididos.
- É o órgão responsável, em última instância, por assegurar a integridade da organização em todos os assuntos.
- Provê a salvaguarda da governança para o capital e os gestores e é um importante instrumento interno de controle.
- É o órgão-chave de tomada de decisão da corporação em nome dos acionistas e repositório do máximo poder da empresa.
- É o fulcro do sistema da governança e ponto focal para acionistas e o sistema de mercado, por estar entre os mais veneráveis instrumentos de governança corporativa.
Os pesquisadores Katharina Pick e Kenneth Merchant apontam tendências em grupos que podem obscurecer talentos de pessoas inteligentes e bem-intencionadas, causando o que chamam de pontos cegos, vieses e ineficiências, capazes de fazer com que os conselhos se tornem ineficazes. Esses fatores podem levar CAs altamente qualificados a não identificar riscos e problemas. Ainda de acordo com esses pesquisadores, os grupos tomam decisões conjuntas que nenhum dos indivíduos assumiria isoladamente. Apesar de o tempo das reuniões ser sempre extremamente limitado, a tendência do grupo é a de se perder em detalhes desimportantes para a qualidade da decisão a ser tomada.
Capítulo 2: Sozinho, mas sempre acompanhado
Perfil de conselheiro. Um homem branco com idade entre 50 e 60 e tantos anos. Esse é ainda o perfil de conselheiro que prevalece ao redor do mundo – a despeito dos ventos que começam a arejar as salas de conselho. Um estudo comparativo, realizado anualmente pela Spencer Stuart entre conselhos de 17 países, indica que, em 2019, os homens seguem dominando os CAs, com presença igual ou superior a 70% em dez países, entre eles Canadá (70%), Estados Unidos (74%), Espanha (79%), Brasil (89%) e Rússia (92%). Com idade média mais alta, os conselheiros norte-americanos ficaram em primeiro lugar, com 63 anos – seguidos pelo Canadá (62 anos) e Holanda (61 anos). Os países com conselheiros mais jovens foram Rússia (55 anos), Noruega (56 anos) e Itália (57 anos), a mesma faixa etária média verificada no Brasil, onde 54% deles têm entre 50 e 69 anos.
Mulher no comando. No Brasil, os números sobre a participação feminina nos conselhos devem ainda ser vistos com adicional reserva. E a explicação é simples: frequentemente, a indicação de mulheres como conselheiras em empresas familiares é resultante de direito familiar, não em decorrência de uma condição profissional. Nessas empresas, não é raro que os controladores deem assento para suas esposas, irmãs e filhas, que se tornam conselheiras formalmente, mas que nem sempre comparecem às reuniões.
A diversidade étnica/cultural nos quadros de líderes das empresas, por exemplo, já está correlacionada à lucratividade, de acordo com o estudo realizado sobre o tema pela McKinsey em 2015 e repetido em 2018. No relatório mais recente, uma das conclusões apresentadas é que “as companhias com time executivo com maior diversidade – não apenas em termos de representação absoluta, mas também na combinação de variedade de etnias – têm 33% a mais de probabilidade de conseguir superar a lucratividade de seus pares”. O documento afirma que essa correlação também ocorre em relação aos conselhos de administração e conclui: as empresas com conselhos com maior diversidade étnica/cultural têm até 43% mais chances de apresentar lucros mais altos.
Capítulo 3: Sob o estresse das tensões
O papel do CA vai além de guardião dos interesses de todos os acionistas; deve se atentar também aos interesses dos demais stakeholders (partes interessadas) da empresa. Essa consciência se evidencia com o crescente questionamento daquela visão de que o valor é gerado exclusivamente para os acionistas. O conceito considera que a empresa deve contemplar a criação de valor para seus stakeholders e equilíbrio com o de seus acionistas e que, além disso, o compromisso do conselheiro deve ser com a empresa em sua totalidade, não somente com seus acionistas.
Em agosto de 2019, a questão ganhou ainda mais destaque, quando os cerca de 200 CEOs que integram a Business Roundtable (BRT) – associação norte-americana criada em 1972 – assinaram a Declaração do Propósito de uma Corporação, assumindo compromissos com a satisfação e o desenvolvimento de clientes, colaboradores, fornecedores, comunidades e acionistas.
A chegada da pandemia da Covid-19, poucos meses depois em 2020, deu ainda mais protagonismo a essas questões e fez com que o “S” (Social) de ESG (Environmental, Social and Governance) arrombasse a porta das salas de reunião dos conselhos de administração. Para assegurar a própria sobrevivência em curto e longo prazos, as empresas foram obrigadas a lançar um novo olhar para as relações em toda a sua cadeia de valor com foco particular em clientes, colaboradores sob a perspectiva de sustentabilidade.
Capítulo 4: Presidente do CA, esse incompreendido
Antes de analisar especificamente o desempenho dos presidentes de conselho, o consultor César Souza destaca que, até os escândalos corporativos, o próprio CA não tinha função relevante nas organizações. Ele relembra que a maioria das reuniões era realizada ad referendum: a ata era preparada e uma secretária se encarregava de circular o documento para colher as assinaturas dos conselheiros. Foi só a partir desses eventos danosos que os códigos e práticas de governança foram aprimorados, e ficou clara a necessidade de haver uma separação entre o poder executivo e o poder de análise e deliberação. Para César Souza, existe um nítido processo evolutivo em andamento, mas o ponto ideal ainda está longe.
Mais do que fonte de poder, o papel do PCA como facilitador do debate também foi advogado por treze presidentes de conselhos reunidos no II Fórum Exclusivo de Presidentes de Conselhos de Administração de Empresas Listadas, realizado pelo IBGC. A cada reunião, um grupo de até vinte presidentes de conselhos partilha suas experiências com o objetivo de melhor delinear o próprio papel. Nesse II Fórum, ficou evidente que, acima de liderar o colegiado, o papel do PCA é incentivar e cobrar a participação de todos os conselheiros, estimulando o debate até mesmo antes do processo deliberativo.
Por essa razão, é função do PCA conversar antes com cada conselheiro sobre o tema a ser deliberado, certificando-se da atualização de todos e do grau de profundidade das informações compartilhadas. Nesse diálogo antecipado, ele deve também entender quais as possíveis dúvidas ou restrições de cada conselheiro. Nesse caso, pode recomendar que haja uma conversa informativa com algum executivo ou o próprio PCA oferece novos elementos complementares à discussão.
Capitulo 5: O que tira o sono dos conselheiros
Barros e Da Silveira apontam ainda outras quatro características resultantes do excesso de otimismo ou autoconfiança desses CEOs, nas operações de M&A (fusão e aquisição):
- Maior endividamento da empresa;
- Pagamento de menores dividendos;
- Preferência por remuneração variável; e
- Recompra frequente de ações da própria empresa.
Thuraisingham e Lemacher identificaram o que chamam de “sinais de alerta”, indicando que o excesso de otimismo ganhou assento na mesa do conselho de administração. Segundo esses autores, os vieses do entusiasmo estão comprometendo a qualidade do processo decisório em um processo de fusão e aquisição quando:
- Há concordância unânime sem muito debate;
- Há previsão de crescimento considerado alto;
- Falta avaliação sistemática de riscos, especialmente dos intangíveis;
- O cronograma da tomada de decisões é curto;
- Há forte ênfase nos aspectos positivos da M&A;
- Há euforia em torno de uma transação de grande porte;
- O processo de due diligence foi apressado e inadequado; e
- A abordagem de riscos é inconsistente.
PARTE II – Pensando fora da caixa
Capítulo 6: O mito da racionalidade corporativa
Um dos primeiros a questionar esse conceito [premissa da racionalidade] foi Herbert Simon, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1978 por sua pesquisa precursora no processo de tomada de decisões dentro das organizações. Em 1974, Simon já argumentava que, em relação à racionalidade humana, as ciências sociais sofriam com a esquizofrenia aguda: de um lado, o homem econômico era considerado absolutamente racional e onisciente e, de outro, a tendência da psicologia social era reduzir o conhecimento à afetividade e demonstrar que o homem não era tão racional quanto gostaria de ser.
Entre estas duas correntes, Simon equilibrou-se em uma nova proposição. Segundo ele, o comportamento humano é intencionalmente racional, mas essa racionalidade só se dá de forma restrita. Esse conceito de racionalidade limitada abriu perspectiva totalmente inovadora na área de administração, reconhecendo os limites humanos para processar informações e, portanto, a consequente inabilidade de os gestores tomarem decisões ótimas de maneira economicamente racional. Sendo assim, para analisar quais são os contornos que podem limitar a racionalidade humana, trazemos à discussão a abordagem comportamental.
Daniel Kahneman, outro ganhador do Nobel de Economia que levou o prêmio em 2002 pela teoria da tomada de decisão, partiu do conceito de racionalidade para conceber, junto com Amos Tversky, uma abordagem do processo do conhecimento humano, explicando suas falhas sistemáticas. Em seu livro Rápido e Devagar, Kahneman adota uma terminologia já consagrada pela psicologia, que é o Sistema 1 e o Sistema 2 do processo cognitivo.
Segundo ele, o Sistema 1 é responsável pelas ações automáticas e rápidas, aquelas atitudes assumidas sem esforço e atenção, até involuntariamente. O Sistema 2, por sua vez, é o eu consciente e raciocinador, aquele que controla as ações que necessitam de atenção e são mais complexas.
Entre as capacidades incluídas no Sistema 1 estão as inatas e também aquelas aprendidas, que se tornam rápidas e automáticas, por causa de muita prática. Já as do Sistema 2 são discricionárias e exigem atenção integral, deixando de ser realizadas assim que o foco é desviado.
É justamente no compartilhamento do controle da atenção que pode surgir a primeira limitação da racionalidade humana. Como afirma Kahneman, o Sistema 1 é capaz de realizar várias tarefas simultâneas, enquanto o Sistema 2 não dispõe dessa capacidade.
A divisão de trabalho entre o Sistema 1 e o Sistema 2 normalmente funciona muito bem. Enquanto o Sistema 1 reage depressa a situações familiares, usando modelos precisos e previsões de curto prazo, o Sistema 2 se mantém confortavelmente em repouso. Essa parceria é eficiente, pois minimiza o esforço e otimiza o desempenho. Ocorre, no entanto, que o Sistema 1, além de nunca ser desligado, tem pouca compreensão lógica. Por isso, seu modelo de resposta – rápido e irrefletido – pode eventualmente “contaminar” o processo.
Capítulo 7: A bússola comportamental
Além de os indivíduos não perceberem os próprios vieses, existe a tendência de observar mais as limitações dos outros do que as próprias – o que só faz amplificar o problema. E esses vieses distanciam a decisão da racionalidade, prejudicando a qualidade do processo de decisão que, por si só, já é impreciso. Como se subestima o nível de irracionalidade que pode tomar conta do raciocínio humano – mesmo que pareça baseado em premissas sólidas como uma rocha –, está aberto o flanco para interferências indesejadas e inconsistentes na decisão. Quando se trata da atuação de executivos e conselheiros, especialmente aqueles profissionais que pouco navegaram além de suas próprias áreas de especialidade, é provável que fiquem mais visíveis justamente os vieses resultantes dessa especialização.
As táticas para prevenir o viés de Groupthink são inúmeras e não se pretende esgotá-las aqui. Além disso, sendo instrumentos eficientes, podem ser aplicados para enfrentar diversas outras disfuncionalidades e patologias que afligem os conselhos de administração.
- Diversidade no conselho. Em seu sentido mais amplo, a diversidade é um grande profilático para esse viés, já que faz o CA ser composto de conselheiros com diferentes formações, posições profissionais, conhecimentos, vivências, origem geográfica, gênero, idade, etnia e estilo. Sim, estilo comportamental. Muito ainda vai se desenvolver nesse campo até que o estilo para tomada de decisão passe a ser elemento relevante para a composição do CA.
- Dar tempo para a incerteza. É comum os conselheiros ficarem desconfortáveis com a incerteza, pois, naquele patamar de senioridade, é como se as dúvidas já não tivessem mais espaço. Lovallo e Sibony concordam com esse perigo, afirmando que a cultura de muitas organizações suprime o reconhecimento das incertezas e recompensa os comportamentos que as ignoram.
- Como exemplo, citam empresas em que um executivo que parece ter grande confiança em um plano tende a ter mais chances de vê-lo aprovado do que outro que destaca os riscos e incertezas de sua proposta. E aqui está o perigo: é justamente da incerteza que virão soluções mais consistentes e mesmo as mais inovadoras. O conselho tem que se permitir navegar por incertezas e questionamentos momentâneos para que o escrutínio do tema seja profundo e todas as opiniões sejam manifestadas, mesmo as dos menos assertivos ou falantes.
A agenda ESG veio para ficar. Apesar da controvérsia narrada no Capítulo 3 a respeito do real compromisso dos autores dos manifestos empresariais, parece improvável que haja retrocesso depois de declarações tão fortes. A mensagem foi clara: o modelo focado exclusivamente nos interesses dos acionistas não é mais apropriado à realidade do século XXI. Cada parte interessada (stakeholder) é essencial e foi assumido o compromisso de entregar valor a todas elas. As experiências já vividas no mundo pós-Covid-19 destacam a necessidade urgente da atenção devida aos fatores ESG.
Assim, para a sustentabilidade dos negócios, é mais adequado avançar e estabelecer um amplo diálogo com esses públicos, antes que suas demandas apareçam nas salas da diretoria como mais uma crise a ser administrada. Os conselheiros precisam buscar uma visão direta das preocupações e expectativas dos stakeholders e, para conseguir isso, têm que sair da sala de reuniões para visitar operações, clientes e comunidades, com as quais a companhia opera. E devem fazer isso cuidadosamente para não interferir na gestão, buscando uma linha direta com as partes interessadas.
Ficha técnica:
Título: A caixa-preta da governança – Conselhos de administração por quem vive dentro deles
Autora: Sandra Guerra
Primeira edição: Best Business
Resumo: Rogério H. Jönck
Edição: Monica Miglio Pedrosa
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