Não precisamos fossilizar o futuro
Guerra da Ucrânia cobra seu preço nos combustíveis e reforça a urgência na virada para a matriz energética renovável
Por Ricardo Natale
A invasão da Ucrânia pela Rússia virou o mercado mundial de petróleo de ponta-cabeça. A depender do tempo que durará o conflito, há motivos suficientes para crer que o mundo viverá uma nova crise de combustíveis fósseis, abundantes no subsolo russo, o que faz do país um dos principais fornecedores mundiais desses produtos.
Uma das represálias adotadas pelos Estados Unidos — seguido também pelo Reino Unido — contra o ataque russo à Ucrânia foi proibir a importação de petróleo do país presidido por Vladimir Putin, que revidou vedando exportações de matérias-primas, cuja lista não divulgou. Com isso, o conflito bélico assume proporções de guerra econômica que afeta o mundo todo.
No Brasil, as consequências da guerra se manifestaram no preço dos produtos vendidos pela Petrobras na quinta-feira, 10 de março, duas semanas após o início da invasão russa. Foi pesado. A gasolina subiu 18,7% e o diesel, 24,90%, acentuando a polêmica acerca da posição da companhia diante do comportamento internacional da cotação do petróleo: segurar os reajustes para ajudar seu principal acionista — o governo — a conter a inflação, ou espelhar no mercado interno o que ocorre no externo, a fim de contentar seus sócios minoritários diluídos na iniciativa privada?
Esperar de uma companhia que detém o monopólio de fato do mercado petrolífero a solução para um problema energético que afeta todo o país não parece uma saída razoável. Quarenta e três anos atrás, impulsionadas pelo Pró-Álcool — programa governamental que incentivava o uso de etanol como substituto da gasolina para atenuar os problemas decorrentes da crise do petróleo de então —, as indústrias automotivas instaladas no Brasil passaram a produzir carros movidos com o combustível extraído da cana-de-açúcar.
Do pioneiro modelo 147, da Fiat, em 1979, movido a álcool, decorreram numerosos avanços tecnológicos para chegar aos atuais carros flex, que podem alternar etanol e gasolina em seu tanque de combustível. Mas é possível avançar mais, pegando carona na crescente substituição de veículos movidos a combustão por elétricos. Em meados do ano passado, por exemplo, a Nissan firmou parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) para evoluir seu projeto de desenvolver um automóvel movido a eletricidade produzida a partir de etanol.
A maior parte dos carros elétricos já existentes precisa ser conectada a uma tomada de energia para reabastecer a bateria que lhe dá autonomia para andar. Mas o protótipo da montadora japonesa é dotado de uma célula de combustível na qual se produz o hidrogênio a ser transformado na energia que o movimentará. A célula é alimentada com etanol, do qual se extrai o hidrogênio.
Além de emitir muito menos gases nocivos para gerar energia em relação às fontes primárias (como usinas movidas a óleo mineral ou carvão, por exemplo) que levam eletricidade às tomadas onde precisam ser plugados os outros carros elétricos, o com célula de hidrogênio extraído do etanol pode ser reabastecido facilmente na mesma bomba dos postos aos quais recorrem os carros convencionais. Seu tanque comporta 30 litros de etanol, que lhe dão autonomia de 620 quilômetros.
Importantes países europeus já decretaram o fim do motor a combustão. Na Alemanha, a produção de automóveis com o sistema será proibida a partir de 2030. No Reino Unido e na França, em 2040. E as principais montadoras de automóveis já definiram seu calendário para abolir o diesel e a gasolina de seus veículos. Tudo para cumprir as metas de descarbonização assumidas por numerosos países (Brasil inclusive), com a finalidade de minimizar os danos provocados no clima e na atmosfera pelos gases do efeito estufa (GEE).
Não se trata apenas de uma questão de veículos, mas de toda a cadeia de mobilidade, com cidades inteligentes, adaptadas a modais de bicicletas elétricas e processos construtivos que estão alavancando investimentos em edifícios sustentáveis no mercado de Real Estate.
A aposta nas fazendas verticais, que consomem muito menos recursos naturais, incluindo energia e fertilizantes fósseis, também deve triplicar até quase US$ 10 bilhões em negócios até 2026.
Itaipu solar
Muitos especialistas creem que a guerra na Ucrânia deve acelerar a transição energética dos combustíveis fósseis para os renováveis. Antes mesmo da eclosão do conflito, o Brasil já demonstrava alguns números animadores nesse sentido. No início de fevereiro, o país ultrapassou a marca de 14 gigawatts (GW) de potência operacional de energia solar, o equivalente ao que produz a Usina Hidrelétrica de Itaipu, segundo a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar).
A marca leva em conta parques centralizados e a geração própria de energia em telhados, fachadas e pequenos terrenos, a chamada geração distribuída. Considerando-se somente as usinas solares de grande porte, o Brasil possui 4,7 GW de potência instalada, que deve crescer para 10,4 GW até 2031.
De acordo com a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), o setor ultrapassou a marca de 20 GW de capacidade instalada no fim de 2021 e deve atingir 32 GW até 2026. Completam a matriz energética brasileira as hidrelétricas, com 101,9 GW de capacidade instalada, e as térmicas a gás natural, com 15,7 GW.
Nem todos os especialistas, no entanto, comungam do otimismo em relação à transição energética. Antes mesmo de a Rússia bombardear a ucrânia, o cientista tcheco Vaclav Smil, autor de Os números não mentem: 71 histórias para entender o mundo, sintetizava o pensamento dos céticos em relação ao poder da descarbonização.
Para ele, o estilo de vida da civilização moderna se assenta sobre quatro pilares: a amônia, o aço, o cimento e o plástico. Graças a esses quatros produtos industriais, diz Smil, temos alimentos em abundância, moradias confortáveis, meios de transporte, máquinas, equipamentos elétricos e eletrônicos. Não vivemos sem eles, e, se o mundo quiser retirar bilhões de pessoas da pobreza, será preciso elevar a produção desses itens nos próximos anos.
Em sua opinião, o problema é que ainda não sabemos como fabricá-los em grande quantidade sem usar combustíveis fósseis e esse é um dos indicativos de que não será fácil alcançar a meta de zerar as emissões mundiais de carbono até 2050, como se estabeleceu nos acordos internacionais.
Se assim for, todos os países terão de intensificar a busca do equilíbrio entre a utilização de fontes fósseis de energia com alternativas renováveis, para que o planeta não seja condenado à extinção, ainda que sobreviva ao atual conflito bélico entre russos e ucranianos.
A iniciativa privada cumpre um papel fundamental nesse processo, liderando a inovação e se antecipando às mudanças. A transição só vai acontecer quando as empresas priorizarem em seus modelos de negócios processos, produtos e serviços movidos baseados em energias renováveis.
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