Tecnologia

Como o iFood cresceu mais de cinco vezes com estratégia de IA

Por Monica Miglio Pedrosa

A decisão foi tomada em 2018, após uma viagem dos executivos do iFood para a China, principal benchmark de tecnologia da companhia: a empresa adotaria a IA como centro de sua estratégia de negócio. Para isso, iniciou uma jornada de transformação que levou o iFood a crescer mais de cinco vezes entre 2019 e 2022, passando de R$ 6 bilhões para R$ 32 bilhões em vendas.

Segundo Diego Barreto, CFO e VP de Estratégia do iFood, essa é uma mudança que deve ser decidida pelos acionistas, por ser uma visão de longo prazo do negócio. Na jornada, é preciso que toda a empresa abrace a estratégia. São mudanças de processo, de tecnologia, mas principalmente de mindset das pessoas. A transformação cultural é fator determinante para o sucesso. “É preciso flexibilidade para se adaptar. Algumas pessoas não mudaram e perdemos algumas no caminho”, conta.

A jornada foi registrada no livro O Cientista e o Executivo: Como o iFood alavancou seus dados e usou a inteligência artificial para revolucionar seus processos, criar vantagem competitiva e se tornar um case mundial de sucesso [o resumo do livro pode ser lido na [EXP]], escrito por Diego e por Sandor Caetano, então Vice-Presidente de Dados e IA do iFood. O objetivo do livro, segundo Diego, era mostrar um case prático de sucesso de uma empresa brasileira que fez a transição para IA e inspirar outras a seguir o caminho, na avaliação dele, uma revolução sem volta. “Estou muito seguro da quantidade de empresas que vão perder uma posição relevante de mercado porque não estão fazendo o movimento na velocidade que a competição vai exigir. Daqui a cinco anos, aquelas que não acelerarem o processo, vão ficar no caminho”, afirma.

Nessa entrevista à [EXP], Diego contou os 7 passos para construir uma empresa orientada à IA e falou sobre os erros, acertos e os aprendizados dessa jornada.

[EXP] – Diego, quando foi que o iFood decidiu direcionar a empresa em torno da IA? Qual foi o momento em que entenderam que essa tecnologia não era mais um hype?

Diego Barreto – Boa pergunta. Nosso principal benchmark de tecnologia é a China. Vamos todos os anos pra lá e, em 2018, nos deparamos com resultados que monitorávamos há algum tempo mostrando o nível de desempenho dos modelos de IA. Nesse ano vimos pela primeira vez que o nível estava próximo ao da performance humana. Esse foi o fato que nos levou a decidir que a IA não era mais uma aposta, mas uma realidade. Quando algo desempenha melhor que o seu benchmark, você introjeta isso na companhia.

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E como foi esse processo de internalizar a IA na companhia?

É importante ressaltar que essa é uma decisão do acionista, não do executivo. Se vier do executivo e ele for embora daqui a dois anos, o que acontece? Tem que ser uma decisão do acionista, uma decisão de longo prazo, de transformação da empresa. Quando a decisão foi tomada no iFood introjetamos isso na nossa visão, na estratégia, nas metas, na formação e na contratação de pessoas. E partimos para a execução.

Como as pessoas receberam isso?

Toda mudança enfrenta alguma resistência. Algumas pessoas acreditam que a empresa que tem na sua engrenagem inteligência artificial precisa ter pessoas que entendam de estatística, dados, tecnologia. Claro que é importante ter pessoas que saibam cada vez mais sobre isso, mas o mais importante é a capacidade de mudar o comportamento, de se adaptar.

Vou dar um exemplo prático que vivi há pouco. Recebi uma imagem com um texto que precisava ser traduzido para o português. O que fiz? Usei um assistente de IA para traduzir a imagem – ele “leu” o texto da imagem e traduziu. Uma pessoa que não tem a cabeça, o comportamento voltado à IA, costuma adotar o comportamento padrão que é escrever o texto da imagem em inglês e usar o tradutor automático. É um exemplo simples, mas mostra como o raciocínio tem de se adaptar: uma imagem pode ter o texto compreendido e traduzido pela IA. As pessoas têm que ter flexibilidade para se adaptar. Nós comunicamos, pedimos a mudança, mas algumas não mudaram. Perdemos algumas pessoas nesse caminho.

Nesse processo, vocês investiram em capacitação das pessoas?

Quando surgiu o pacote Office e o mercado começou a usar, aquelas que não sabiam usar foram aprender. É um conhecimento, um aprendizado que fica para você. Então é um investimento seu e a informação hoje está toda disponível para as pessoas. Algumas pessoas podem falar que IA é muito novo, mas esse aprendizado é para você, não para minha empresa, você sairá um profissional mais qualificado. Isso não quer dizer que em alguns momentos, para um conteúdo muito específico, a empresa não possa capacitar. Mas essa não é a regra.

Imagino que em uma empresa da nova economia, como o iFood, o mindset das pessoas facilite essa mudança para uma nova tecnologia.

Não, isso é um engano. Porque quando o iFood foi criado não existia IA no mercado, só em ambientes de pesquisa, mais laboratorial. Então para nós também existia uma barreira, um desafio humano de aprender o novo. O que nos ajuda é o fato de sermos uma empresa que usa a metodologia de produto e isso envolve muito teste, o que automaticamente faz com que as pessoas tenham uma cabeça mais aberta para projetar novas tecnologias. Só vai ser impactado negativamente ao longo do tempo pela tecnologia aquelas pessoas que não se adaptarem a ela. Tecnologia não elimina posto de emprego, ela transforma o posto de emprego. A história comprova isso.

Por que você e o Sandor [Caetano] resolveram contar esse case no livro O Cientista e o Executivo?

O motivo foi muito simples. Conseguimos criar um diferencial competitivo importante com a IA. Quando vamos para o exterior e nos reunimos com outras companhias globais, sempre chegamos à conclusão de que estamos em um estado de performance muito alto. As empresas brasileiras precisam entender que os brasileiros são capazes de fazer isso aqui. É sobre capital humano. Mesmo que os profissionais estejam em falta, ou nem todas as pessoas estejam preparadas, é possível fazer a mudança. O livro foi um call to action para dizer às pessoas que é possível. O iFood é um exemplo feito no Brasil, por brasileiros, para brasileiros.

Quem é o público-alvo do livro? Vocês estão atingindo algum público que não esperavam?

O livro é muito focado para empresas de maior parte, porque essa é a nossa realidade. Empresas da nova e da velha economia, sem distinção. O que chamou muito nossa atenção é a quantidade de empresas menores que ficaram muito interessadas. Claro, as empresas grandes, de todos os segmentos, nos procuram, mas a quantidade de pequenas empresas interessadas no tema foi uma coisa que surpreendeu. E o livro tira essa percepção de que é uma mudança difícil de fazer. Se você tem acesso ao conhecimento prático de como fazer, você vê que é possível. É só inserir essa decisão na sua visão e trazer as pessoas certas.

Além das pessoas, que outras mudanças precisaram ser feitas?
Uma total reengenharia na forma como pensamos dados. Em uma empresa que não é orientada à IA, os dados ficam dispersos em sistemas, que usam diferentes linguagens. É preciso criar um data lake, transformando as informações em uma linguagem única para que todos possam usar. O último elemento é fazer com que isso aconteça em todas as áreas. IA não é só de uma área. Isso quer dizer que cada área vai ter o seu modelo? Não necessariamente, mas elas têm de considerar ter um modelo proprietário, um modelo interno de uma outra área ou um modelo externo. O importante é considerar isso no processo decisório.

Vocês optaram por desenvolver muita tecnologia proprietária, dentro de casa. Como as empresas devem decidir o que desenvolver internamente?

Todo processo que é muito específico para o seu negócio e faz parte do core tem que ser desenvolvido internamente. Você não tem outra opção. Empresas como Meta, Open AI, Google fazem modelos de prateleira, para alcançar um grupo muito grande de hipóteses, modelos genéricos. Claro que se eu precisar de um tradutor não tem lógica construir um internamente. Mas quando eu vou criar um modelo que irá atuar em toda minha operação logística, esse é um modelo específico do meu negócio, das minhas cidades, da forma que eu opero. Essa combinação de modelos proprietários e não proprietários é o que permite se transformar em uma empresa que cria vantagem competitiva. E o que for muito óbvio, um processo não core, não específico, pode ser externo. Usamos o Bard, do Google, desde 2019 para resolver questão de taxonomia de comida, por exemplo.

Que aplicações vocês desenvolveram que mudaram a regra do jogo, tiveram um impacto muito grande no negócio?

Foram inúmeras. Posso citar algumas. No nosso aplicativo, a conversão é maior quando os restaurantes têm boas fotos dos pratos. Só que é inviável estimular 330 mil restaurantes, que estão na minha base, a investirem em boas fotos. Com a IA, temos uma ferramenta na plataforma que dialoga com os restaurantes que não usam boas fotos de seus pratos e recomenda melhorias. Ela toma as decisões automaticamente, faz as recomendações para os 330 mil restaurantes. Isso aumenta a conversão e o crescimento.

O segundo exemplo que posso destacar é o do atendimento. Hoje o atendimento no iFood é feito por um algoritmo e por pessoas. O algoritmo tem melhor NPS do que o atendimento humano. Lembrando que nosso negócio tem dois picos durante o dia, no almoço e no jantar. Portanto eu preciso ter concentração de pessoas nesses horários, depois elas ficam sem fazer nada nos “vales”, um grande nível de ineficiência. Então uma solução de IA melhora a qualidade do atendimento para o consumidor, o fluxo da operação e os custos.

"A tecnologia só vai impactar negativamente as pessoas que não se adaptarem. Ela não elimina, ela transforma posto de emprego."

Que passos o iFood deu e você recomenda que empresas que escolherem esse caminho sigam?

Em primeiro lugar essa é uma decisão do acionista, não do executivo. É uma decisão de longo prazo. Segundo ponto, é preciso inserir na visão da empresa esses elementos de inteligência artificial. Terceiro ponto, fazer um change management, uma gestão de mudança. É preciso que as pessoas compreendam a mudança, os interesses estejam alinhados, que aconteça uma comunicação frequente, simples e eficaz. Quarto, upskilling e reskilling das pessoas. Elas é que têm de fazer, não a empresa. Quinto, é preciso ter uma referência técnica muito forte. Sexto, criar esse data lake, o ambiente de dados que falei anteriormente. E sétimo, mas tão importante quanto, é preciso que as pessoas que não queiram participar dessa jornada sejam demitidas. Senão elas não permitem que todos os elementos anteriores cheguem aonde eles podem chegar.

Imagino que, como em qualquer novo caminho, vocês tenham cometido erros. Que aprendizados extraíram deles? Que conselhos você pode dar para empresas que vão trilhar esse caminho?

Erramos muito. O primeiro erro é que tínhamos uma expectativa de uma aceleração maior do comportamento das pessoas. Achamos que após a comunicação da mudança elas iriam agir rápido, mas isso foi subestimado. O processo foi mais demorado do que nossa expectativa, o que gerou certa frustração.

Também erramos muito em vários testes. O que é normal, como você citou, mas quando você está vivendo o erro isso gera aquele incômodo, em especial porque em uma empresa com alto nível de transparência como a nossa isso fica muito claro pra todo mundo. Mesmo que o erro no final tenha um valor importante para a construção final de uma ideia muito boa, ele gera muita coisa, inclusive perdas financeiras. Chegamos a ter erros que nos levaram a perder R$ 2 milhões, R$ 3 milhões de um dia para o outro. Isso acontece porque estamos fazendo a mudança com o carro em movimento, não dá para fazer a mudança em 10 anos, da forma mais zelosa possível.

Por fim, eu diria que a gente poderia ter acelerado mais o processo de upskilling e reskilling das pessoas. Apostamos muito só na liderança em um primeiro momento, deveríamos ter descido a decisão também para a média gerência.

7 passos para construir uma empresa orientada à IA, segundo Diego Barreto, CFO do iFood

Quando vocês investem no desenvolvimento de uma aplicação, têm o ROI como um fator de decisão?

Primeiro, é importante termos a certeza de que o modelo é mais eficiente e entrega mais resultado que um ser humano, dada a quantidade de variáveis que estão sendo usadas. Então sabemos que ela dará retorno, o difícil é mensurar quanto. Porque estamos falando de inovação, de uma aposta, com base na segurança e na convicção de que aquela mudança é possível e é transformadora para o negócio. É melhor do que ficar fazendo cálculo financeiro que é quase como brincar com o Excel.

Que áreas do iFood avançaram mais rápido na mudança?

No iFood foram logística e marketing. Porque são áreas em que o impacto na operação é brutal. Na hora que eu consigo melhorar a operação logística tenho efeito e impacto no cliente, no entregador, no restaurante e resultado financeiro. Então as áreas que tinham essa consciência de um impacto muito mais transformador foram as áreas que acabaram sendo priorizadas em termos de alocação de recursos.

Em que novidades vocês estão trabalhando agora?

Estamos apostando muito nessa próxima fase de LLM (Large Language Models). Até então trabalhávamos com modelos que não tinham essa criatividade, que chamamos de “porteira pra dentro”. Os LLMs são modelos “porteira pra fora”, que me permitem trabalhar, por exemplo, nesse atendimento por algoritmos que comentei anteriormente. Essa é a próxima grande fase, conseguir trabalhar com produtos que possam interagir com seres humanos de uma forma criativa e escalável. Essa é a nossa aposta para os próximos dois anos.

Leia mais:

Resumo do livro O Cientista e o Executivo, por Diego Barreto e Sandor Caetano

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