Volta presencial às aulas abre espaço para retomada das mulheres no mercado de trabalho
ParaAna Fava, professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC, a desiguldade de gênero é estrutural e a reabertura de escolas e creches é fundamental para combatê-la
Com o retorno de crianças e jovens às aulas presenciais, finalizado o período de isolamento devido à pandemia de Covid-19, as mulheres poderão retomar seu espaço no mercado de trabalho. “A reabertura das escolas é muito importante. Escola e creche sempre foram fundamentais, principalmente as oferecidas pelo governo, as públicas. Isso vai liberar o trabalho das mulheres. Não tem como as mulheres se inserirem no mercado de trabalho com a ausência desses serviços”, afirma Ana Fava, professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC – atuando especialmente com pesquisa de gênero, economia da educação e economia feminista – e membro do Grupo de Estudos em Economia da Família e Gênero (GeFam).
Dessa forma, pode haver uma redução do acirramento da desigualdade de gênero no mercado de trabalho que ocorreu com a pandemia. Segundo Ana, o problema da desigualdade de gênero é estrutural. “Essa pandemia é um momento em que a gente poderia pensar em uma melhor divisão dos cuidados e dos afazeres domésticos, pensar numa disruptura na qual o casal, estando em casa, comece a estabelecer meios para dividir melhor as tarefas”, diz.
Essa desigualdade, contudo, ainda é uma realidade. Muitas mulheres optaram por sair do mercado de trabalho durante a pandemia para cuidar das crianças que ficaram integralmente em casa e o momento é de dúvida sobre a retomada. “Se tem que ficar um em casa e o outro ir trabalhar, normalmente quem fica em casa é a mulher”, afirma Ana.
Confira a entrevista de Ana Fava ao Experience Club:
Dupla jornada feminina
“A questão da dupla jornada, as mulheres já carregam há muito tempo. Aqui no Brasil a gente busca, através de contratar empregadas domésticas, aliviar a dupla jornada da mulher. Em outros países onde não há essa opção das empregadas domésticas, tem um arranjo de melhor divisão dos afazeres domésticos entre marido e mulher. Aqui, a gente não conseguiu dividir melhor entre marido e mulher. “
“Quando as escolas fecham, que você fica impossibilitada de contratar serviços para a sua casa, realmente tem aquele primeiro momento que é de muita sobrecarga. E este é um momento bem difícil lidar”.
“Na Pnad-Covid 19 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid 19, do IBGE), tem uma pergunta que é ‘por que você não procurou emprego?’. E muitas mulheres respondem que é porque elas têm que cuidar de alguém”.
“Num segundo momento eu acho que as pessoas foram se flexibilizando cada um à sua maneira, alguns conseguiram viver sem esses serviços, outros foram consumir mais eletrodomésticos, a gente tem relatos de pessoas que contrataram professor particular, contrataram cuidadores para poder lidar com essa questão de manter o trabalho e manter os cuidados com as crianças”.
Diferenças sociais
“Não é só achar meios de lidar com o trabalho e os serviços de cuidado da casa. Tem a questão do tipo de trabalho também. Teve gente que não pode trabalhar remotamente. Isso está ligado com a renda”.
“Empregos que são melhores remunerados também são empregos em que é mais fácil ir para o trabalho remoto. E as pessoas de baixa renda têm empregos que têm essa questão de ser presencial. Nisso elas são duplamente impactadas, porque muitas vezes essas mulheres estão na informalidade. Se elas não vão trabalhar, também não vão receber. E tem essa questão não só de ter de cuidar das crianças, dos jovens, da casa, dos idosos, mas também tem a questão de como lidar com o ensino, a presença ou não da internet, a inclusão digital, será que eles têm acesso? Que tipo de acesso? É um acesso adequado? Porque uma coisa é você ter a criança ou o jovem tendo contato com o ensino remoto por computador e, outra coisa, é pelo smartphone”.
“Outra questão também é a capacidade de ajudar a criança no processo de escolarização. Porque o ensino remoto, dependendo da idade, ele não é autônomo. A criança não é autônoma, ela tem que ter um adulto, e isso envolve também a capacidade de ensinar essas crianças”.
“As coisas só acumulam. Essa diferença de renda ela só acumula problemas”.
Questão cultural
“Acho que é uma questão cultural nossa essa de as mães serem quem vai se responsabilizar pelo acompanhamento das crianças no ensino remoto. Mas isso não é só aqui no Brasil. Tem um estudo, feito nos Estados Unidos, que olha o tipo de casamento que tem direito a receber a divisão dos bens. Nos estados em que as mulheres têm direito a receber uma divisão mais equalitária, no pós-covid, as mulheres saem do mercado de trabalho e vão cuidar da casa e dos filhos”.
“E a gente tem que lembrar também que tem uma parte que não é desprezível dos domicílios, especialmente de baixa renda, que são monoparentais. Não tem como você tentar empurrar para o marido mais responsabilidades, porque ele é inexistente”.
Cenário brasileiro
“Isso de as mulheres saírem do mercado de trabalho também se repete no Brasil. É perceptível através da própria Pnad-Covid, que tinha uma pergunta sobre quais as razões de não estar procurando emprego e mostrava uma porcentagem considerável de mulheres que diziam que não estavam procurando emprego porque tinham que cuidar de alguém. Acho que esse impacto de ter crianças, de ter idosos, em casa, que na nossa cultura é responsabilidade da mulher”.
Perspectivas
“Nós temos uma preocupação muito grande se não vai haver um retrocesso das conquistas das mulheres no mercado de trabalho. Porque a gente observa outras rupturas, como no século passado, com as guerras mundiais, que trouxeram algumas perdas em termos de direito das mulheres”.
“É preciso ter um cuidado muito grande para que isso não aconteça. Principalmente num momento de crise, em que há falta de emprego, para que elas não sejam expulsas do mercado”.
“Em relação às escolas, é um serviço fundamental para possibilitar às mulheres o retorno. A gente pode também começar a discutir qual é o papel do ensino integral”.
“Essa crise é uma oportunidade de expor os serviços com os cuidados. Todo mundo sentiu na pele o que são os cuidados, o que são os afazeres domésticos. Isso foi colocado em evidência em nível mundial, mas como a gente vai transformar isso numa conquista positiva? A gente precisa de vigilância, precisa de políticas públicas para que isso seja realmente incorporado”.
Riscos de retrocesso
“Alguns riscos dessa possibilidade de retrocesso seriam a perda de participação no mercado de trabalho, a crise, ou, se houver a continuidade do remoto, a questão do crescimento da informalidade. Porque as mulheres estão mais inseridas no mercado informal. As mulheres que saem do mercado de trabalho, será que elas retornam? Qual é a perda de sair num momento desses do mercado de trabalho? É uma disruptura muito grande. Daqui para frente muitas coisas diferentes podem acontecer. Vai depender de como a sociedade vai reagir a esses acontecimentos. Com o retorno das escolas, apesar de ainda haver alguma insegurança com relação à pandemia, isso garante que as mulheres não vão ter que acumular mais essa responsabilidade de ficar com as crianças”.
Escolas fechadas
“O Brasil ficou muito tempo com as escolas fechadas. Os Estados Unidos ficaram menos tempo fechados. Comparando Brasil e Estados Unidos, lá as escolas fecharam. Mas para quem era trabalhador de saúde, para as enfermeiras, as médicas, a escola nunca fechou. O Estado garantiu a quem tinha que cuidar das pessoas doentes que os filhos estaraim amparados. Aqui no Brasil, fechou para todo mundo”.
“É muito difícil a gente pensar em não ter nenhum tipo de auxílio. Para essas pessoas seria preciso ter dado algum amparo, tanto na escola privada quanto na escola pública, para as mães poderem trabalhar. Quando você está em casa, está no remoto, você ainda consegue garantir que seu filho não perca tanto. É a tripla jornada. Além de você ter que cuidar como mãe, você tem que cuidar como professora também”.
Recursos
“O pessoal de economia da educação, que estuda a contribuição dos pais para o aprendizado dos filhos, fala sobre a diferença da quantidade de palavras que as crianças conseguem falar dependendo do nível de educação da mãe. Ter um nível universitário é uma questão de 5 mil palavras a mais que a criança consegue falar no vocabulário dela. Imagina a mãe ter que ensinar matemática, se ela não foi ensinada em matemática”.
Texto: Cláudia Bredarioli
Foto: arquivo pessoal de Ana Fava
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