Os nômades digitais vão ao paraíso
Por Andrea Rozenbaum*
Entre os muitos processos que foram acelerados pela pandemia de 2020, a ideia de trabalho remoto também foi ampla e rapidamente implementada. Enquanto para muitos o home office surge como uma novidade que veio para mudar as relações de trabalho, essa realidade já era comum para os chamados ‘nômades digitais’. A ampliação do nomadismo digital, que agora se dá de forma imposta e massiva, traz diversas implicações e oportunidades tanto para contratantes como para contratados. Do lado de quem recruta e contrata profissionais, há uma ampliação da rede de colaboradores com expertises específicos para um patamar mais global. Do lado dos trabalhadores, abrem-se espaços para refletir sobre questões como a localidade de moradia e trabalho, a flexibilidade horária e a liberdade de filiações.
Para debater sobre essas questões, introduzo o conceito de ‘nômades digitais’ e trago algumas reflexões e sugestões a partir da minha experiência convivendo de perto com pessoas que escolheram seguir esse estilo de vida.
OS NÔMADES DIGITAIS
O que afinal significa ser um ‘nômade digital’?
O conceito ‘nômade digital’ se popularizou entre 2014 e 2015, e tem aparecido com maior frequência na imprensa nos últimos anos¹. Ele se refere a profissionais que utilizam a tecnologia digital para trabalhar, e que, por terem a possibilidade de exercer suas funções remotamente, sem a necessidade de uma localidade fixa, se engajam no estilo de vida nômade.
Em que setores trabalham?
A maioria dos nômades digitais trabalha na indústria criativa ou tecnológica. Mas também há profissionais de outros ramos, como o mercado financeiro e áreas administrativas. As formas de atuação também variam. Enquanto a maioria dos nômades atua como freelancer, empreendedor, ou consultor, alguns também têm contratos fixos.
O que impulsiona as pessoas a seguirem o estilo de vida nômade?
Um grande impulsionador da vida nômade é a possibilidade de viver em locais onde o custo de vida é baixo. Ao ganhar suas rendas em moedas ‘fortes’, como o Dólar Americano, ou o Euro, muitos trabalhadores se direcionam a locais onde conseguem fazer seu dinheiro render mais, e acabam economizando, mesmo tendo maiores custos com viagens. Por isso, lugares como a Tailândia e a Indonésia se tornaram hubs atrativos para os nômades digitais.
Identifiquei dois tipos de trajetórias comuns que levaram as pessoas a seguir esse estilo de vida. De um lado, havia aqueles com um instinto de explorar o mundo, e que, por conta disso, buscaram trabalhos que pudessem ser realizados à distância. Alguns já atuavam em áreas em que o trabalho remoto era comum ou mais aceito. Outros, guinaram suas carreiras para ramos diferentes em busca de oportunidades com esse foco.
A outra parte das pessoas que se tornaram nômades digitais eram empreendedores, que de certa forma já exerciam seus trabalhos online, utilizando tecnologia e sem a necessidade de se ater a um lugar específico. Em algum momento, eles perceberam que não precisavam mais se manter fixos em uma casa, uma cidade, ou uma zona horária e resolveram se aventurar.
Onde residem?
Como o tempo de estadia dos nômades digitais pode variar, é comum encontrá-los em moradias de aluguel temporário, hostels e co-livings. Enquanto alguns mudam de lugar a cada duas semanas ou a cada mês, outros optam por ficar pelo menos 3 meses no mesmo local. Também é comum encontrar pessoas que, depois de viajar por certo tempo, decidem se fixar por um ano ou mais em um lugar.
Apesar de oferecerem um bom custo e oportunidades de socializar, hostels acabam não sendo a melhor alternativa para os nômades, que precisam de certa privacidade e espaço para trabalhar. Já, apartamentos de aluguel temporário com bons preços – compartilhados ou não -, pressupõe muitas vezes que a pessoa seja residente local, e isso cria uma série de barreiras. Diante disso, os chamados ‘co-livings’ se tornaram uma boa alternativa para esse público. Por isso, neles podemos encontrar uma grande concentração de nômades digitais.
Mas o que são ‘co-livings’? Durante a minha pesquisa de mestrado em Antropologia Cultural e Social² (Universidade de Amsterdam, 2019), tive a oportunidade de morar durante 3 meses em Barcelona (Espanha) em um co-living. A ideia de ‘co-living’ é derivada dos já conhecidos ‘co-workings’. Trata-se de uma casa compartilhada para moradia temporária focada principalmente em hospedar os nômades digitais. Lá, além de espaços para morar, há salas de trabalho e atividades que visam integrar os residentes. Enquanto investigava a relação dos residentes com a tecnologia digital, conheci de perto suas histórias, convivendo intensamente com eles.
TRÊS REFLEXÕES PARA O FUTURO DO MERCADO DE TRABALHO
Enquanto os nômades digitais pré-pandemia optaram por seguir esse estilo de vida e trabalhar remotamente, no caso de muitos profissionais essa condição está sendo imposta pelo contexto atual. Apesar de não ser uma escolha ativa, mas ao contrário, a única opção viável, esse novo formato de trabalho já está mudando a forma como contratantes e contratados se relacionam. A partir da experiência dos nômades digitais, podemos refletir sobre essas transformações, que agora chegam em maior escala e de forma mais massiva.
#1 Quais são as implicações da independência de localidade?
O trabalho remoto sugere que as pessoas trabalhem de onde quiserem, proporcionando uma liberdade de localidade. Assim como no caso dos nômades digitais, basta ter uma boa conexão com a internet e uma estrutura adequada, para que esse trabalho se torne viável.
O fato de estarmos experimentando esse tipo de configuração não significa que, a partir de agora, todos aqueles que podem irão trabalhar apenas à distância.
Porém, algumas ideias antes pré-definidas, podem ser repensadas, se tornando, talvez, mais aceitas. Uma delas é a apropriação de home-office em mais ocasiões. Isso pode fazer, por exemplo, com que os trabalhadores estendam uma viagem de final de semana, podendo trabalhar numa segunda-feira desde outra localidade, evitando o trânsito do domingo. Outra ideia que já causa menos estranhamento são as reuniões online. Além de evitar a necessidade de deslocamento pela cidade, muitas vezes trazem praticidade e objetividade.
Uma terceira concepção que se torna mais facilmente aceita é a contratação de trabalhadores de outras cidades, estados, e, até mesmo, países. Com isso, além de aumentar o espectro de opções para contratação tanto do lado do empregador e empregado, muitas pessoas podem acabar repensando o lugar onde querem morar. Viver em locais onde o custo de vida é menor e a qualidade de vida melhor pode ser uma opção para muitos. A tendência de êxodo urbano, que já vinha em uma crescente nos últimos anos³, pode ganhar ainda mais força agora que mais pessoas descobrem que a possibilidade do trabalho à distância é viável. Como já estamos experimentando atualmente, esse tipo de mudança também acarreta uma diminuição no impacto ambiental, já que pressupõe menos gastos com transporte, menor consumo de combustível, diminuindo, consequentemente, a emissão de gases poluentes.
Do lado do contratante, ter a opção de ter funcionários em outras localidades pode implicar investimentos menores. Isso pode ir desde o investimento em salários menos competitivos, até uma redução de custos com transporte, infraestrutura, aluguéis, e gastos regulares de escritórios. Além disso, o alcance de uma mão de obra mais qualificada ou específica por parte do empregador pode ser ampliado, já que a localidade deixa de ser uma barreira.
Com essas possibilidades de trabalho remoto se tornando mais aceitas, sua prática poderá aumentar. E, com isso, outras implicações vêm à tona. Como mencionei anteriormente, atualmente a maioria dos nômades digitais trabalha nas indústrias criativas e tecnológicas, e são, em grande parte, freelancers ou empreendedores. Porém, à medida que empregadores e empregados se dão conta de que o trabalho à distância pode funcionar bem em outros cargos e funções, abre-se espaço para que mais pessoas persigam esse estilo de vida. Nesse sentido, podemos antever uma ampliação do nomadismo digital para outras áreas de atuação, para outros perfis de cargos – em áreas administrativas e financeiras, por exemplo -, e para contratos regulares.
#2 Mais liberdade e flexibilidade: O que isso significa na prática?
A possibilidade de trabalhar remotamente também significa, em muitos casos, que não se gasta mais tempo com deslocamento. Dessa forma, há um tempo “de sobra”, que para cada pessoa pode se materializar de formas distintas. Grande parte dos nômades digitais direcionam esse tempo para explorar o mundo. Enquanto algumas pessoas podem aproveitar para se dedicar a um hobby, ou passar mais tempo com a família, outros podem ampliar suas atividades de trabalho para além da sua função atual.
Isso pode significar, por exemplo, que pessoas com contratos fixos, utilizem seu tempo excedente se engajando em outros projetos, ou empreendendo paralelamente em um “plano B”. Isso pode implicar uma ampliação de filiações, fazendo que muitas pessoas não estejam mais “presas” a um trabalho, mas, ao contrário, mais livres para se engajar em outros projetos ou prospectar clientes.
Somado a isso, a jornada de trabalho de 40 horas semanais (típica no Brasil), distribuídas em 8 horas diárias, também pode sofrer revisões. A partir do momento em que as pessoas experimentam outros arranjos em sua rotina de trabalho, tanto empregados como empregadores podem começar a se questionar sobre a forma como organizam suas jornadas. Haveria, por exemplo, a possibilidade de uma distribuição de horas mais flexível? Ou um método de estabelecimento de prazos para determinadas entregas? Ou então períodos do dia ou da semana reservados para reuniões e outros para foco individual? As possibilidades são diversas e, à medida que são experimentadas, dão margem para que as estruturas a que os trabalhadores estavam acostumados sejam repensadas.
Com essas possibilidades em mente, podemos antever transformações nas configurações mais comumente encontradas hoje em empresas brasileiras: de regimes de trabalho mais flexíveis à possibilidade de ampliar as redes de empregadores e empregados. De certa forma, tais transformações podem aproximar o modelo de trabalhador contratado à ideia do nômade digital. Ao se deparar com uma maior flexibilidade de tempo e de filiações, o empregado amplia seu espectro e se encontra mais livre.
Em relação aos empregadores, se por um lado muitos de seus funcionários deixam de ser apenas “seus”, essa nova configuração pode ser tida como uma oportunidade para ampliar sua base de talentos. Ao passo que as opções de contrato crescem de uma escala local para um patamar mundial, o pool de talentos se torna mais diversificado.
Uma empresa local, por exemplo, pode buscar um expertise específico para uma demanda pontual independente de sua localidade, e sabendo que o trabalho remoto é viável.
Enquanto a ideia de flexibilidade e maior liberdade ainda pode soar assustadora para muitos empregadores, gerando certa resistência à ideia de trabalho remoto, se for abordada por outros ângulos, pode trazer benefícios a ambos os lados. Alguns estudos, por exemplo, apontam um aumento da produtividade. Apesar de ainda não haver dados conclusivos para entender com profundidade os benefícios do trabalho à distância, podemos
tomar o momento em que estamos vivendo como uma oportunidade para experimentar outras formas e configurações nas relações trabalhistas.
O desafio, contudo, é aproveitar os benefícios da atração de talentos nômades e das relações mais flexíveis, sem que o ambiente de trabalho excessivamente fluido descaracterize a cultura e os valores da organização. Ao contar com muitos freelancers ou contratados em regime parcial, gerenciar a motivação, engajamento e a integração de colaboradores fixos e eventuais se torna uma tarefa mais complexa.
#3 Como ficam os benefícios para os colaboradores?
No contexto em que o trabalho presencial diário não voltará necessariamente a ser a realidade de muitas pessoas, questões em relação aos benefícios direcionados aos trabalhadores vêm à tona. Como ficaria, por exemplo a questão dos benefícios de transporte e refeição para pessoas que deixam de ir ao local de trabalho todos os dias? Se, por um lado o empregado que contava com esse suporte pode deixar de tê-lo, por outro, pode gerar uma economia por parte do empregador.
Um benefício primordial que ganha espaço na discussão é o seguro de saúde privada. Para quase todos os nômades digitais que conheci, essa era uma preocupação constante. Seus contratos não regulares, ou o modelo de trabalho freelance, fazia com que tivessem que guardar parte de suas rendas para investir em um plano de saúde privada. No Brasil, apesar de termos um sistema público de saúde (SUS), por conta de um sub-financiamento estrutural, os pacientes acabam se deparando com longas esperas. Assim, muitos brasileiros contam com o sistema privado e, consequentemente acabam utilizando os benefícios fornecidos por seus empregadores.
Se enquanto isso é tema de grande preocupação do lado dos trabalhadores, do lado dos contratantes pode se tornar um diferencial na hora de atrair talentos. Oferecer um bom plano de saúde privada pode ser um atrativo para aquele trabalhador que optou por seguir uma vida nômade, mas que ainda quer ter um vínculo empregatício. Principalmente no contexto atual, em que, ao mesmo tempo que temos um grande aumento do desemprego, e as pessoas estão reconhecendo ainda mais a importância dos cuidados com a saúde, isso se torna um diferencial ainda mais relevante.
Ao estendermos a discussão para os benefícios dos trabalhadores em uma nova configuração trabalhista que se aproxima à realidade dos nômades digitais, podemos refletir sobre questões com as quais trabalhadores e empregadores já estão começando a se deparar.
REFLEXÕES FINAIS
Se de certa forma o trabalho à distância parece ser algo recente para muita gente, o fato de ter sido implementado em alta velocidade por ser – em muitos casos – a única opção viável na pandemia, fez com que contratantes de contratados finalmente vivenciassem esse formato na prática. Agora, enquanto estamos vivendo, experimentando e nos acostumando a novas configurações de trabalho, ainda temos muito a descobrir.
Ao olhar para a experiência dos nômades digitais, que já viviam a realidade de trabalhar remotamente há alguns anos, podemos ter algumas pistas do que está por vir. Assim como o nomadismo digital, o êxodo urbano e a flexibilidade são, por ora, alguns aspectos que podemos antever. Quem sabe daqui a um ou dois anos possamos olhar para trás e ter uma percepção mais clara do impacto das transformações atuais na forma como trabalhamos.
*Sobre a autora:
Com mais de 10 anos de experiência trabalhando nas áreas de estratégia e pesquisa de mercado, Andrea Rozenbaum se especializou em Antropologia Cultural e Social com um mestrado na Universidade de Amsterdam. Ela desenvolveu sua tese no tema da constante conectividade, buscando compreender as interações entre humanos e tecnologia digital e suas implicações. Agora, como doutoranda em Sociologia Cultural também na Universidade de Amsterdam, ela investiga a influência de colecionadores e museus privados de arte contemporânea no campo cultural.
Notas:
1 O termo ‘digital nomad’ (nômade digital), foi introduzido inicialmente em estudos acadêmicos (Hart, 2015;
Johanson, 2014; Spinks, 2015), e ganhou mais evidência e popularidade com a sua apropriação pela mídia
(New York Times [03/04/17], BBC [15/07/18], The Guardian [11/05/19], acessados em Maio, 2020).
2 Minha tese pode ser acessada em inglês em: https://scripties.uba.uva.nl/search?id=707875
3 https://reporterunesp.jor.br/2019/05/14/exodo-urbano-interior-alternativa/
Imagens: Andrea Rozenbaum
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