Homo Deus
O futuro do mundo na perspectiva do israelense Yuval Noah Harari, um dos mais lidos, discutidos e cultuados historiadores contemporâneos
Ideias centrais:
1- A ideia fundamental das religiões humanistas, como o liberalismo, o comunismo e o nazismo, é que o Homo sapiens tem uma ciência única e sagrada, fonte de todo o sentido e de toda a autoridade no universo.
2 – No século XXI, é improvável que os dogmas humanistas sejam substituídos por teorias puramente científicas. No entanto, a aliança que conecta ciência e humanismo pode desmoronar e dar lugar a um tipo diferente de trato, entre a ciência e alguma religião pós-humanista.
3 – Tanto socialistas como humanistas evolutivos ressaltaram que o entendimento liberal da experiência humana é falho. Os liberais pensam que a experiência humana é um fenômeno individual. Mas há muitos indivíduos e frequentemente sentem coisas diferentes e têm vontades contraditórias.
4 – Computadores não são, em 2016 [data do lançamento do livro], mais conscientes do que seus protótipos na década de 1950. No entanto, estamos à beira de uma grave revolução. Humanos correm o risco de perder seu valor porque a inteligência está se desacoplando da consciência.
5 – Como os algoritmos estão tirando os humanos do mercado de trabalho, a riqueza e o poder poderão se concentrar nas mãos de uma minúscula elite que é proprietária desses algoritmos todo-poderosos, criando uma desigualdade social e política jamais vista.
Sobre o autor:
Yuval Noah Harari nasceu em 1976, em Israel. É autor de Sapiens: Uma breve história da humanidade, best-seller internacional publicado em mais de 35 países. É ph.D. em história pela Universidade de Oxford e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Capítulo 1 – A nova agenda humana
Durante milhares de anos a resposta a essa questão não se alterou. Os mesmos três problemas preocupavam as pessoas da China no século XX, da Índia medieval e do antigo Egito. Fome, pestes e guerra sempre estiveram entre as principais dificuldades enfrentadas. Geração após geração os humanos rezaram para todos os anjos, deuses e santos e inventaram um sem-número de ferramentas, instituições e sistemas sociais – mas seguem morrendo aos milhões de inanição, epidemias e violência. Muitos pensadores e profetas concluíram que a fome, a peste e a guerra deviam fazer parte do plano cósmico de Deus ou de nossa natureza imperfeita, e nada a não ser o fim dos tempos nos livraria delas.
Abra um livro de história e provavelmente você vai deparar com relatos terríveis de populações famintas, enlouquecidas pela fome. Em abril de 1694, um funcionário do governo francês na cidade de Beauvais descreveu o impacto da fome e dos cada vez mais elevados preços de comida: o distrito todo estava tomado por “um número infinito de pobres almas, debilitadas pela fome e pela miséria, cuja morte era provocada pela carência total, porque, não obtendo trabalho ou ocupação, não dispunham de dinheiro para comprar pão. Buscando prolongar um pouco suas vidas e de algum modo matar a fome, esses desvalidos começaram a comer coisas tão impuras como gatos e carne de cavalos esfolados e atirados num monte de esterco”.
Epidemias continuaram a matar dezenas de milhões de pessoas em pleno século XX. Em janeiro de 1918, soldados nas trincheiras do norte da França começaram a morrer aos milhares de um tipo virulento de gripe, denominado “gripe espanhola”. A linha de frente da guerra era o ponto final da mais eficiente rede de suprimento global que o mundo tinha visto até então. Homens e munições jorravam da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, da Índia e da Austrália. O petróleo era enviado do Oriente Médio, grãos e carne chegavam da Argentina, a borracha vinha da Malásia, e o cobre, do Congo. Em troca, todos receberam gripe espanhola.
Um projeto central consiste em proteger a humanidade e o planeta como um todo dos perigos inerentes ao nosso poder. Conseguimos controlar a fome, as pestes e a guerra graças, enormemente, a um fenomenal crescimento econômico, que nos provê de alimento, medicina, energia e matérias-primas abundantes. Mas esse mesmo crescimento desestabiliza o equilíbrio ecológico do planeta de maneiras que só estamos começando a investigar. O gênero humano atrasou-se no reconhecimento desse perigo, e até agora pouco fez para combatê-lo.
Mesmo que os detalhes sejam obscuros, podemos ter uma noção correta da direção geral da história. No século XXI, o terceiro grande projeto da humanidade será adquirir poderes divinos de criação e destruição e elevar o Homo sapiens à condição de Homo deus. Esse terceiro projeto obviamente engloba os dois primeiros e é por eles alimentado. Queremos ter a capacidade de fazer a reengenharia de nosso corpo e mente acima de tudo para escapar à velhice, à morte e à infelicidade, mas, uma vez dispondo disso, o que mais poderíamos fazer com tal capacidade? Assim, bem podemos pensar que a nossa agenda humana na realidade consiste em um só projeto (com muitos ramos): alcançar a divindade.
Parte 1 – O Homo sapiens conquista o mundo
Capítulo 2 – O Antropoceno
Mesmo se deixarmos de lado essas perspectivas futuras e só olharmos para trás, para os últimos 70 mil anos, é evidente que o Antropoceno alterou o mundo de maneira única. Asteroides, placas tectônicas e mudanças climáticas podem ter impactado organismos no mundo todo, porém sua influência difere de uma região para outra. O planeta nunca se constituiu num único ecossistema; era, sim, uma coleção de muitos ecossistemas frouxamente conectados. Quando movimentos tectônicos juntaram a América do Norte à América do Sul, eles levaram à extinção da maior parte dos marsupiais sul-americanos, mas não exerceram nenhum efeito prejudicial no canguru australiano. Quando a última era do gelo atingiu seu clímax, 20 mil anos atrás, medusas no Golfo Pérsico e medusas na baía de Tóquio tiveram, nos dois casos, de se adaptar ao novo clima. Entretanto, como não havia conexão entre as duas populações, cada uma reagiu distintamente, evoluindo em direções diferentes.
Hoje em dia, a maioria das porcas em fazendas industriais não joga jogos de computador. Durante a gestação, ficam trancadas por seus senhores humanos em minúsculos cercados de dois metros por sessenta centímetros. Esses engradados, com piso de concreto e barras de metal, mal permitem que as porcas prenhes se virem ou durmam deitadas de lado, muito menos que caminhem. Depois de três meses e meio nessas condições, elas são levadas para cercados um pouco mais largos, onde os filhotes nascem e são alimentados. Embora devessem mamar durante dez a vinte semanas, nas fazendas industriais os leitões são desmamados à força depois de quatro semanas, separados de suas mães e enviados para a engorda e o abate. A mãe é imediatamente inseminada e devolvida ao cercado de gestação para dar início a mais um ciclo. O uso desses engradados foi proibido na União Europeia e em alguns estados dos EUA, mas ainda são utilizados em muitos países.
O surgimento da ciência e da indústria modernas trouxe consigo a revolução seguinte nas relações entre homens e animais. Durante e Revolução Agrícola, a humanidade silenciou animais e plantas e transformou a grande ópera animista num diálogo entre os homens e deuses. No decorrer da Revolução Científica, a humanidade silenciou também os deuses. O mundo transformou-se em um one man show. O gênero humano estava sozinho num palco vazio, falando consigo mesmo, negociando com ninguém e adquirindo poderes enormes sem nenhuma obrigação. Depois de decifrar as leis mudas da física, da química e da biologia, o gênero humano agora faz com elas o que quiser.
Enquanto a Revolução Agrícola deu origem às religiões teístas, a Revolução Científica fez nascerem as religiões humanistas, nas quais humanos substituem deuses. Os teístas cultuam theos (“deus”, em grego) e os humanistas cultuam humanos. A ideia fundamental das religiões humanistas, como o liberalismo, o comunismo e o nazismo, é que o Homo sapiens tem uma essência única e sagrada, fonte de todo o sentido e de toda a autoridade no Universo. Tudo o que acontece no cosmo é considerado bom ou mau de acordo com o impacto que exerce sobre o Homo sapiens.
Capítulo 3 – A epifania humana
Embora as escolas não estejam, evidentemente, fazendo um bom trabalho no ensino da evolução, os fanáticos religiosos ainda insistem que ela não deveria ser ensinada. Alternativamente, exigem que se ensine também a teoria do Design Inteligente, segundo o qual todos os organismos foram criados de acordo com o projeto de alguma inteligência superior (também conhecida como Deus). “Ensinem ambas as teorias”, dizem os fanáticos, “e que as crianças decidam por si mesmas.”
É por isso que a teoria da evolução não pode aceitar o conceito de alma se por “alma” entendemos algo indivisível, imutável e potencialmente eterno. Tal entidade não poderia resultar de uma evolução passo a passo. A seleção natural pode produzir um olho humano porque os olhos têm partes. Mas a alma não. Se a alma do Sapiens evoluísse passo a passo a partir da alma do Erectus, quais exatamente seriam esses passos? Há alguma parte da alma que é mais desenvolvida no Sapiens do que no Erectus? Mas a alma não tem partes.
A alma é uma história que algumas pessoas aceitam e que outras rejeitam. O fluxo de consciência, em oposição, é a realidade concreta que testemunhamos diretamente a cada momento. É o que há de mais certo no mundo. Não se pode duvidar de sua existência. Mesmo quando, consumidos pela dúvida, perguntamos a nós mesmos: “Experiências subjetivas existem?”, podemos estar certos de que estamos experimentando uma, em forma de dúvida.
Para ser franco, a ciência sabe surpreendentemente pouco sobre mentes e consciência. A ortodoxia atual sustenta que a consciência é criada por reações eletroquímicas no cérebro e que as experiências mentais realizam alguma função essencial de processamento de dados. No entanto, ninguém tem a menor ideia de como um amontoado de reações bioquímicas e correntes elétricas no cérebro criam a experiência subjetiva da dor, da raiva ou do amor. Talvez tenhamos uma explicação sólida dentro de dez ou cinquenta aos. Mas em 2016, não dispomos delas, e é melhor sermos claros quanto a isso.
Assim como distingue os humanos de outros animais, essa capacidade de criar entidades intersubjetivas distingue as ciências humanas das ciências naturais. Historiadores buscam compreender o desenvolvimento de entidades intersubjetivas, como deuses e nações, enquanto biólogos dificilmente reconhecem a existência delas. Alguns acreditam que, se pelo menos conseguirmos quebrar o código genético e mapear cada neurônio no cérebro, deteremos todos os segredos da humanidade. Afinal, se os homens não têm alma, e se pensamento, emoções e sensações são apenas algoritmo bioquímicos, por que a biologia não poderia responder por todos caprichos das sociedades humanas? Desse ponto de vista, as cruzadas foram disputas territoriais formatadas por pressões evolutivas, e os cavaleiros ingleses que foram combater Saladino na Terra Santa não eram tão diferentes assim dos lobos que tentam se apropriar do território de uma alcateia vizinha.
Parte II O Homo sapiens dá um significado ao mundo
Capítulo 4 – Os contadores de histórias
A Revolução Agrícola, que começou há cerca de 12 mil anos, forneceu a base material necessária para ampliar e fortalecer as redes intersubjetivas. O cultivo da terra possibilitou que se alimentassem milhares de pessoas em cidades superpovoadas e milhares de soldados em exércitos disciplinados. No entanto, as redes intersubjetivas encontraram um novo obstáculo. Para poder preservar os mitos coletivos e organizar uma cooperação massiva, os primeiros agricultores se basearam nas aptidões de processamento de dados do cérebro humano, que eram estritamente limitadas.
Como deuses nunca morrem e como não têm filhos para disputar sua herança, eles acumularam cada vez mais propriedades e poder. Um número crescente de sumérios viu-se trabalhando para os deuses, tomando empréstimos junto a eles, cultivando suas terras e devendo-lhes impostos e dízimos. Assim como na San Francisco de hoje João é empregado da Google, enquanto Maria trabalha para a Microsoft, na antiga Uruk uma pessoa era empregada pelo grande deus Enki, ao passo que sua vizinha trabalhava para a deusa Inana. Os templos de Enki e de Inana dominavam a linha de horizonte de Uruk, e seus logotipos divinos eram a marca de prédios, produtos e roupas. Para os sumérios, Enki e Inana eram tão reais quanto o Google e a Microsoft são reais para nós. Comparados a seus antecessores – os fantasmas e espíritos da Idade da Pedra -, os deuses sumérios eram entidades muito poderosas.
O poder dos registros antigos atingiu seu apogeu com o surgimento de escrituras sagradas. Nas civilizações antigas, sacerdotes e escribas acostumaram-se a considerar documentos como guias para a realidade. No início, os textos versavam sobre a realidade dos impostos, dos campos e dos celeiros. Mas, assim como a burocracia ganhou poder, os textos ganharam autoridade. Sacerdotes anotavam não somente as listas das propriedades de um deus, mas também seus feitos, mandamentos e segredos. As escrituras resultantes tinham o propósito de descrever a realidade em sua inteireza, e gerações de estudiosos se habituaram a procurar todas as respostas nas páginas da Bíblia, do Corão ou dos Vedas.
No século XXI vamos criar mais ficções poderosas e mais religiões totalitárias do que em qualquer era anterior. Com a ajuda da biotecnologia e de algoritmos computacionais, essas religiões não só controlarão nossa existência minuto a minuto, como serão capazes de configurar nossos corpos, cérebros e mentes, e de criar mundos inteiramente virtuais. Ser capaz de distinguir ficção de realidade e religião de ciência ficará, portanto, mais difícil, porém mais vital do que jamais foi antes.
Capítulo 5 – O estranho casal
Na verdade, as coisas são muito mais complicadas. A ciência moderna certamente mudou as regras do jogo, embora não tenha apenas substituído os mitos pelos fatos. Os mitos continuam a dominar o gênero humano. A ciência só os torna mais fortes. Em vez de destruir s realidade intersubjetiva, a ciência permitirá que ela controle as realidades objetivas e subjetivas de modo mais completo. Graças aos computadores e à biotecnologia, a diferença entre ficção e realidade se tornará indistinta, à medida que pessoas reformatam a realidade para que se encaixem em suas ficções prediletas.
Liberais, comunistas e seguidores de outros credos modernos não gostam de descrever os próprios sistemas como “religião” porque a identificam com superstição e forças sobrenaturais. Se você disser a comunistas ou liberais que eles são religiosos, eles vão pensar que você os está acusando de acreditar cegamente em sonhos sem fundamento. Na verdade, significa apenas que se trata de pessoas que acreditam em algum sistema de leis morais que não foi inventado pelo homem e ao qual, apesar disso, os humanos devem obedecer. Até onde sabemos, todas as sociedades humanas acreditam nisso. Toda sociedade diz a seus membros que eles devem obedecer a alguma lei moral sobre-humana e que violá-la resultará em uma catástrofe.
De uma perspectiva histórica, a jornada espiritual é sempre trágica, pois é um caminho solitário apenas para indivíduos e não para sociedades inteiras. A cooperação humana requer respostas firmes e não somente perguntas justas, e aqueles que se enfurecem contra escrituras religiosas insensatas frequentemente acabam forjando novas estruturas em seu lugar. Isso aconteceu com os dualistas, cujas jornadas espirituais se tornaram estamentos religiosos. Isso aconteceu com Martinho Lutero que, depois de desafiar as leis, as instituições e os rituais da Igreja Católica, escreveu novos livros de leis, fundou novas instituições e inventou novas cerimônias. Isso aconteceu até mesmo com Buda e Jesus. Em sua busca intransigente da verdade, eles subverteram as leis, os rituais e as estruturas do hinduísmo e do judaísmo tradicionais. No entanto, ulteriormente mais leis, mais rituais foram criados em seu nome do que em nome de qualquer outra pessoa na história.
Filósofos, como Sam Harris, alegam que a ciência sempre pode solucionar dilemas éticos, pois os valores humanos sempre ocultam algumas declarações factuais. Para Harris, todos os humanos compartilham um único valor supremo – minimização do sofrimento e maximização da felicidade – e, portanto, todos os debates éticos são discussões factuais concernentes ao meio mais eficaz de maximizar a felicidade. Fundamentalistas islâmicos querem alcançar o paraíso para poderem ser felizes, os liberais acreditam que incrementar a liberdade humana maximiza a felicidade, e os nacionalistas alemães pensam que seria melhor para todo mundo se se permitisse que Berlim governasse o planeta. Segundo Harris, islâmicos, liberais e nacionalistas não estão em conflito ético; eles estão em desacordo factual sobre o melhor modo de alcançar seu objetivo comum.
A religião está interessada acima de tudo em ordem. Tem como objetivo criar e manter uma estrutura social. A ciência está interessada acima de tudo no poder.
De acordo com isso., seria muito mais correto considerar a história moderna como o processo de formulação de um acordo entre a ciência e uma religião específica – ou seja, o humanismo. A sociedade moderna acredita em dogmas humanistas e usa a ciência não para questioná-los, e sim, ao contrário, para implementá-los. No século XXI, é improvável que os dogmas humanistas sejam substituídos por teorias puramente científicas. No entanto, a aliança que conecta ciência e humanismo pode muito bem desmoronar e dar lugar a um tipo muito diferente de trato, entre ciência e alguma nova religião pós-humanista. Vamos dedicar os próximos dois capítulos a compreender a aliança moderna entre ciência e humanismo. A terceira e última parte do livro explicará por que essa aliança está se desintegrando e que novo trato pode vir a substituí-la.
Capítulo 6 – A aliança moderna
Se investirmos dinheiro em pesquisas, as descobertas científicas irão acelerar o progresso tecnológico. Novas tecnologias vão alimentar o crescimento econômico, e uma economia em crescimento pode destinar ainda mais dinheiro à pesquisa. Cada década que passar poderemos usufruir de mais alimento, de veículos mais rápidos e de medicamentos mais eficazes. Um dia nosso conhecimento será tão vasto e nossa tecnologia tão avançada que conseguiremos destilar o elixir da juventude eterna, o elixir da felicidade verdadeira e qualquer outra droga que possamos vir a desejar – e nenhum deus irá nos deter.
Políticos e economistas modernos insistem em que o crescimento é vital por três razões principais. Primeiro, quando se produz mais, podemos consumir mais, elevar nosso padrão de vida e supostamente usufruir de uma vida mais feliz. Segundo, à medida que o gênero humano se multiplica, é preciso que a economia cresça para que ao menos continuemos como estamos. Por exemplo, na Índia, o crescimento populacional é de 1,2% ao ano. Isso quer dizer que, se a economia indiana não crescer todo ano ao menos 1,2%, o desemprego vai aumentar, os salários vão cair e o padrão de vida médio vai diminuir. Terceiro, mesmo que os indianos parassem de se multiplicar, e mesmo que a classe média indiana se satisfizesse com o padrão atual de vida, o que faria a Índia no que concerne a suas centenas de milhões de cidadãos que vivem na pobreza? Se a economia não crescer, e consequentemente a torta permanecer do mesmo tamanho, só se poderia dar mais aos pobres tirando algo dos ricos. Isso obrigaria a que se fizessem escolhas muito duras, e provavelmente causaria muito ressentimento e até violência. Para evitar tais escolhas, o ressentimento e a violência, precisa-se de uma torta maior.
Portanto, temos uma boa chance de superar o problema da escassez de recursos. A nêmesis real da economia moderna é o colapso ecológico. Tanto o progresso científico como o crescimento econômico têm lugar numa biosfera frágil, e, à medida que ganham impulso, suas ondas de choque desestabilizam a ecologia. Para poder oferecer a cada pessoa no mundo um padrão de vida semelhante ao de americanos abastados, precisaríamos de alguns planetas a mais – entretanto só dispomos deste. Se progresso e crescimento terminam com a destruição do ecossistema, o custo será cobrado não apenas de morcegos-vampiros, raposas e coelhos, mas também do Sapiens. Uma desintegração ecológica causaria ruína econômica, tumulto político, queda de padrão de vida humano e poderia ameaçar a própria existência da civilização humana.
O contrato moderno nos prometeu um poder sem precedente – e a promessa foi mantida. E quanto ao preço? Em troca do poder, o trato moderno espera que abramos mão do significado. Como os humanos lidaram com essa demanda assustadora? Obedecer a ela poderia resultar facilmente em um mundo sombrio, destituído de ética, estética e compaixão. Permanece, entretanto, o fato de que o gênero humano hoje não é apenas mais poderoso do que nunca; é também muito mais pacífico e cooperativo. Como os humanos conseguiram isso? Como foi que a moralidade, a beleza e até mesmo a compaixão sobreviveram e floresceram num mundo sem deuses, sem céu e sem inferno? O gênero humano foi salvo não pela lei da oferta e da procura, e sim pela ascensão de uma nova e revolucionária religião – o humanismo.
Capítulo 7 – A revolução humanista
O antídoto para uma existência sem sentido e sem lei foi fornecido pelo humanismo, um novo e revolucionário credo que conquistou o mundo nos séculos mais recentes. A religião humanista cultua a humanidade e espera que esta assuma na peça o papel que era de deus no cristianismo e no islamismo e que cabia às leis da natureza no budismo e no taoísmo. Enquanto, tradicionalmente, o grande plano cósmico emprestava um significado à vida humana, o humanismo inverte os papéis e espera que as experiências dos humanos deem significado ao grande cosmo. De acordo com o humanismo, os humanos devem extrair de suas experiências interiores não apenas o significado da própria vida, mas também o significado de todo o Universo. Este é o mandamento primário que o humanismo nos deu: criem um significado para um mundo sem significado.
Nossos sentimentos preveem significado não somente a nossas vidas privadas, mas também a processos sociais e políticos. Quando queremos saber quem deveria governar o país, que política exterior adotar e que medidas econômicas tomar, não procuramos as respostas nas escrituras, nem obedecemos às ordens do papa ou do Conselho de Laureados do Nobel. Na maioria dos países, realizamos eleições democráticas e perguntamos ao povo o que ele acha sobre o assunto em questão. Acreditamos que o eleitor é quem sabe as respostas e que a livre escolha de humanos individualmente constitui a autoridade política final.
Mas o eleitor saberá o que escolher? Ao menos teoricamente, supõe-se que ele consulte seus sentimentos mais íntimos e siga sua orientação. Isso nem sempre é fácil. Para entrar em contato com meus sentimentos, eu preciso filtrar e eliminar slogans vazios de propaganda, as mentiras intermináveis de políticos empedernidos, os ruídos criados por marqueteiros.
Quando Nietzsche declarou que Deus estava morto, era isso que ele realmente estava pensando. Ao menos no Ocidente. Deus tornou-se uma ideia abstrata que alguns aceitam e outros rejeitam, o que faz pouca diferença. Na Idade Média, sem um deus eu não teria uma fonte de autoridade política, moral e estética. Não poderia dizer o que era correto, bom ou bonito. Quem poderia viver assim? Hoje, em contraste, é muito fácil não acreditar em deus porque não tenho um preço a pagar por minha descrença. Posso ser um completo ateu e, ainda assim, extrair uma rica mistura de valores políticos, morais e estéticos de minha experiência interior.
Segundo a filosofia chinês, o mundo é sustentado pela interação de forças opostas, porém complementares, chamadas yin e yang. Isso pode não ser verdadeiro quanto ao mundo físico, mas certamente é quanto ao mudo moderno que se criou da aliança entre a ciência e o humanismo. Todo yang científico contém dentro dele um yin humanista, e vice-versa. O yang nos provê de força, enquanto o yin nos fornece significado e juízos éticos. O yang e o yin da modernidade são a razão e a emoção, o laboratório e o museu, a linha de produção e o supermercado. As pessoas enxergam frequentemente apenas o yang e imaginam que o mundo moderno é seco, científico, lógico e utilitarista – exatamente como um laboratório ou uma fábrica. Mas o mundo moderno também é um extravagante supermercado. Nenhuma cultura na história jamais deu tanta importância aos sentimentos, desejos e experiências humanos.
Contudo, tanto socialistas como humanistas evolutivos ressaltaram que o entendimento liberal da experiência humana é falho. Os liberais pensam que a experiência humana é um fenômeno individual. Mas há muitos indivíduos no mundo, e eles frequentemente sentem coisas diferentes e têm vontades contraditórias. Se toda autoridade e todo significado emanam das experiências individuais, como conciliar as contradições entre experiências tão diferentes?
Este livro começou com a previsão de que no século XXI os humanos tentarão alcançar a imortalidade, a felicidade e a divindade. Essa previsão não é muito original ou de longo alcance. Ela simplesmente reflete os ideais tradicionais do humanismo liberal. Como o humanismo há muito tem santificado a vida, as emoções e os desejos dos seres humanos, não há de ser surpresa que uma civilização humanista queira maximizar a duração da vida humana, a felicidade humana e o poder humano.
Parte III – O Homo sapiens perde o controle
Capítulo 8 – A bomba-relógio no laboratório
O verdadeiro prego no caixão da liberdade é fornecido pela teoria da evolução. Assim como não pode se enquadrar na ideia de almas eternas, tampouco a evolução pode engolir a ideia de livre-arbítrio. Porque, se os humanos são livres, como a seleção natural poderia tê-los configurado? Segundo a teoria da evolução, todas as escolhas que os animais fazem – de moradia, de comida ou de parceiros – refletem seu código genético. Se, graças a seus genes adequados a isso, um animal opta por comer um cogumelo nutritivo e copular com parceiros saudáveis e férteis, esses genes são transmitidos à próxima geração. Se em razão da existência de genes não adequados, um animal escolhe cogumelos venenosos e parceiros anêmicos, esses genes se extinguirão. Contudo, se um animal escolher “livremente” o que comer e com quem se acasalar, a seleção natural deixa de funcionar.
A ciência abala não apenas a crença liberal no livre-arbítrio, mas também a crença no individualismo. Os liberais acreditam que temos um único e indivisível eu. Ser um indivíduo significa que sou in-divisível. Sim, meu corpo é feito de aproximadamente 37 trilhões de células, e a cada dia meu corpo e minha mente passam por incontáveis permutações e transformações. Mas, se eu realmente prestar atenção e me empenhar no propósito de ficar em contato comigo mesmo, vou acabar descobrindo bem dentro de mim uma voz única, clara e autêntica, que é meu verdadeiro eu e fonte de todo significado e autoridade no Universo. Para que o liberalismo faça sentido, eu preciso ter um – e apenas um – verdadeiro eu, pois se houvesse mais de uma voz autêntica, como saber qual voz considerar na seção eleitoral, no supermercado e no mercado matrimonial?
As ciências biológicas abalaram o liberalismo, alegando que o indivíduo livre é tão somente uma história ficcional fabricada por um conjunto de algoritmos bioquímicos. A cada momento, os mecanismos bioquímicos do cérebro criam um lampejo de experiência, que imediatamente desaparece. Depois mais lampejos aparecem e desaparecem em rápida sucessão. Essas experiências momentâneas não se somam em qualquer essência duradoura. O eu da narrativa tenta impor ordem a esse caos urdindo uma história interminável, na qual cada experiência tem seu lugar e um significado durável. Porém, por mais convincente e tentadora que possa ser, essa história é uma ficção. Cruzados medievais acreditavam que Deus e o céu tinham dado a suas vidas um significado. Liberais modernos acreditam que escolhas livres individuais é que dão sentido à vida. Todos são igualmente delírios.
Contudo, assim como os heréticos insights científicos são traduzidos para a tecnologia da vida diária, para as atividades e estruturas econômicas rotineiras, fica cada vez mais difícil manter esse jogo duplo, e nós – ou nossos herdeiros – provavelmente vamos precisar de um pacote totalmente novo de crenças religiosas e instituições políticas. No início do terceiro milênio, o liberalismo está ameaçado não pela ideia filosófica de que “não há indivíduos livres”, e sim por tecnologias concretas. Estamos prestes a deparar com uma inundação de dispositivos extremamente úteis, ferramentas e estruturas que não fazem concessão ao livre-arbítrio dos indivíduos humanos. Poderão a democracia, o livre mercado e os direitos humanos sobreviver a ela?
Capítulo 9 – O grande desacoplamento
No passado, havia muitas coisas que somente humanos podiam fazer. Mas hoje robôs e computadores estão assumindo esse papel e logo poderão sobrepujar os humanos no cumprimento da maioria das tarefas. É verdade que o funcionamento dos computadores é muito diferente do dos humanos, e parece improvável que eles se tornem humanoides em pouco tempo. Em particular, não parece que computadores estejam prestes a ter consciência, nem emoções e sensações. As últimas décadas assistiram a um avanço imenso na inteligência dos computadores, mas o avanço na consciência dessas máquinas foi nulo. Até onde sabemos, computadores não são, em 2016, mais conscientes do que seus protótipos na década de 1950. No entanto, estamos à beira de uma grave revolução. Humanos correm o risco de perder seu valor porque a inteligência está se desacoplando da consciência.
Considere agora o famoso Watson da IBM – um sistema de inteligência artificial que venceu o programa Jeopardy! em 2011, derrotando ex-campeões humanos. Watson atualmente está sendo preparado para fazer um trabalho mais sério, em particular no diagnóstico de doenças. Uma inteligência artificial como a de Watson teria vantagens potenciais enormes em relação a médicos humanos. Primeiro por poder armazenar em seus bancos de dados informações sobre todas as doenças conhecidas na história da medicina e, a partir daí, atualizar tais bancos diariamente, não só com descobertas de novas pesquisas, mas também com estatísticas médicas coletadas em todas as clínicas e todos os hospitais do mundo.
Como os algoritmos estão tirando os humanos do mercado de trabalho, a riqueza e o poder poderão se concentrar nas mãos de minúscula elite que é proprietária desses algoritmos todo-poderosos, criando uma desigualdade social e política jamais vista. Hoje em dia, milhões de taxistas, motoristas de ônibus e caminhoneiros têm uma significativa influência econômica e política, cada uma dessas classes dominando uma pequena parcela de mercado de transportes. Se seus interesses coletivos forem ameaçados, eles podem se sindicalizar, fazer greve, organizar boicotes, e criar poderosos blocos de votação em eleições. Contudo, assim que milhões de motoristas humanos forem substituídos por um único algoritmo, toda essa riqueza e todo esse poder estarão acuados pela corporação que seja a dona do algoritmo, e pelo punhado de bilionários que são os donos da corporação.
As novas tecnologias do século XXI podem, assim, reverter a revolução humanista, destituindo humanos de sua autoridade e passando o poder a algoritmos não humanos. Se você está horrorizado com essa possível direção dos fatos, não culpe os fanáticos da computação. Os responsáveis na verdade são os biólogos. É crucial dar-se conta de que toda essa tendência é alimentada mais por insights biológicos do que pela ciência da computação. Foram as ciência biológicas que chegaram à conclusão de que organismos são algoritmos.
Se não for esse o caso – se organismos funcionam de maneira inerentemente diferente à dos algoritmos -, então, os computadores poderão até mesmo fazer maravilhas em outros campos, porém não serão capazes de nos compreender e de direcionar nossa vida, e certamente não serão capazes de se fundir conosco. Mas, depois de concluir que organismos são algoritmos, os biólogos derrubaram o muro entre o orgânico e o inorgânico, transformaram o viés da revolução computacional de uma questão puramente mecânica num cataclismo biológico e transferiram a autoridade de humanos individuais para algoritmos em rede.
Se descobertas científicas e desenvolvimentos tecnológicos dividirem o gênero humano em uma massa de humanos inúteis e uma pequena elite de super-humanos aprimorados, ou se a autoridade passar totalmente das mãos humanas para as de algoritmos altamente inteligentes, então o liberalismo entrará em colapso. Que novas religiões ou ideologias poderão preencher o vácuo resultante e orientar a evolução de nossos descendentes divinoides?
Capítulo 10 – O oceano da consciência
Apear de todo o discurso do Islã e do fundamentalismo cristão, o lugar mais interessante do mundo não é o Estado Islâmico ou o Cinturão da Bíblia, e sim o Vale do Silício. É onde os gurus da alta tecnologia estão fermentando para nós novas religiões admiráveis que pouco têm a ver com deus, e tudo a ver com a tecnologia. Eles prometem os prêmios clássicos – felicidade, paz, prosperidade e até vida eterna -, mas, aqui mesmo na Terra, com a ajuda da tecnologia, e não depois da morte, com a ajuda de seres celestiais.
Quando se mescla uma aptidão prática de configurar mentes com nossa ignorância do espectro mental e com os interesses estreitos de governos, exércitos e corporações, tem-se uma receita para a encrenca. Podemos ter êxito no upgrade do corpo e do cérebro, mas ao mesmo tempo perder a mente no processo. De fato o tecno-humanismo pode resultar em um downgrade, ou seja, na degradação, dos humanos. O sistema pode preferir humanos degradados não porque possuiriam destrezas super-humanas, e sim porque lhes faltariam algumas qualidades humanas realmente perturbadoras que interferem no sistema e o desaceleram. Como todo fazendeiro sabe, é o bode mais esperto do rebanho que causa mais problemas, e é por isso que a Revolução Agrícola envolve a degradação das aptidões mentais dos animais. A segunda revolução cognitiva sonhada por tecno-humanistas poderá fazer o mesmo conosco.
O tecno-humanismo enfrenta aqui um dilema impossível. Ele considera a vontade humana o que há de mais importante no Universo, por isso incentiva o gênero humano a desenvolver tecnologias capazes de replanejar nossa vontade. Afinal, é tentador obter o controle daquilo que é o que há de mais importante do mundo. Mas, uma vez de posse desse controle, o tecno-humanismo não saberia o que fazer com ele porque a sagrada vontade humana se tornaria apenas mais um produto de um designer. Jamais podermos lidar com essas tecnologias enquanto acreditarmos que a vontade e a experiência humanas são a fonte suprema da autoridade e do significado.
Uma tecnorreligião mais ousada está buscando cortar definitivamente o cordão umbilical humanista. Ela vislumbra um mundo que não gira em torno de desejos e experiências de quaisquer seres humanoides. O que poderia substituir desejos e experiências como fonte de toda autoridade e de todo significado? Em 2016, há um único candidato sentado na sala de espera da história, aguardando a entrevista para admissão no emprego. O candidato é a informação. A religião mais interessante que emerge disso tudo é o dataísmo que não venera nem deuses nem o homem – venera dados.
Capítulo 11 – A religião de dados
Não são apenas os organismos individuais que estão sendo considerados sistemas de processamento de dados – são sociedades inteiras, como colmeias de abelhas, colônias de bactérias, florestas e cidades humanas. Economistas interpretam cada vez mais a economia como um sistema de processamento de dados. Leigos acreditam que a economia consiste em camponeses cultivando trigo, operários fabricando roupas e consumidores comprando pão e roupa íntima. Os especialistas, porém, a veem como um mecanismo que reúne dados sobre desejos e aptidões e que os transforma em decisões.
Exatamente porque a tecnologia está avançando tão rápido, porque parlamentos e ditadores estão tão sobrecarregados de dados que não conseguem processá-los com rapidez suficiente, os políticos da atualidade estão pensando numa escala muito menor que seus predecessores um século atrás. Consequentemente, no início do século XXI a política está desprovida de grandes visões. Governar tornou-se meramente administrar. Gerencia-se um país, sem liderá-lo. O governo garante que professores recebam seu salário em dia, que sistemas de esgoto não transbordem, mas não tem ideia de onde o país estará daqui a vinte anos.
Conclusão
Este livro rastreia as origens de nosso condicionamento atual a fim de que afrouxemos seu domínio e pensemos de modo muito mais imaginativo sobre nosso futuro. Ao invés de estreitar nossos horizontes com a previsão de um cenário único e definitivo, o livro visa ampliar nossos horizontes e nos fazer conscientes de um espectro de opções muito mais amplo. Como tenho repetidamente enfatizado, ninguém sabe de fato como o mercado de trabalho, a família ou a ecologia serão em 2050, ou quais religiões, sistemas econômicos ou estruturas políticas dominarão o mundo.
Resenha: Rogério H. Jönck
Imagens: reprodução e Unsplash
Ficha técnica:
Título: Homo Deus – Uma breve história do amanhã
Título original: Homo Deus: A Brief History of Tomorrow
Autor: Yuval Noah Harari
Primeira edição: Companhia das Letras
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